sexta-feira

Negócios que embaraçam toda a gente -por Sandro Mendonça -

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 | Expresso 

O controlo do contexto


Comecemos por falar da obra das jornalistas Maria João Babo e Maria João Gago, 
"O Último Banqueiro " (191 páginas). Este é um livro rápido pertinente, publicado no calor de
um instável Verão pela Lua de Papel depois de um oportuno desafio lançado pelo editor, 
José Prata.
Entre os livros de que aqui damos nota, este é o mais recente. Dado à estampa apenas no 
mês passado (Julho) exibe já (em Agosto), contudo, as marcas do tempo. Mas isso não é 
demérito da obra, mas antes sinal da extrema mutabilidade do objecto de análise. É curioso
notarmos que ainda no início de Julho o cenário era que Ricardo Salgado deixasse a liderança
do seu banco a 31 desse mês. Pouco antes ainda tinha revelado disponibilidade para ser 
reeleito quando o seu então mandato terminasse, em finais de 2015, argumentando "Esta crise
é uma crise que requer experiência." (pg. 31).
Este livro dá uma importância decisiva à noção de "clã" (p. 21). Os mecanismos de 
acumulação de poder funcionavam por laços de sangue e nas veias das hierarquias 
tradicionais, práticas aliás pouco consonantes com noções abstractas como "sociedade 
aberta" ou "economia de mercado" que tantos comentadores dizem convencionais promovem
mas que olham embevecidos para este mundo de aparências. Os Espírito Santo tinham uma
presença central nos negócios de todo o grupo sobretudo através do seu máximo e colegial
órgão, o "conselho superior da família" (p. 24). Mesmo esse aparentemente distraído Crédit
Agricole tinha um papel na gestão, isto é, não seria um "sleeping partner"(p. 26).
O livro dá ainda conta também que a gestão foi ficando cada vez mais concentrada na figura
de Ricardo Salgado, nascido e criado para ser banqueiro no coração de um resistente 
"capitalismo de família". Um investidor próximo confessa: "com ele a influência executiva 
ganhou supremacia à influência accionista" (p. 117). E com isto Salgado confundia-se com a
família, e o banco com o grupo. Salgado tornou-se referência para todo o sector, o primeiro
entre os pares. Diz alguém profissionalmente próximo: "Quando está o presidente da APB
[Associação Portuguesa de Bancos], Ricardo Salgado é o segundo a falar depois do líder da
associação. Quando não está o presidente da APB, é o primeiro a falar" (p. 114).
Mais do que a antiguidade de nome icónico ou de Ricardo Salgado como o decano dos
banqueiros, é a "qualidade dos contactos" (p. 114) e o "controlo do contexto" (p. 116) que se 
destacou como o fulcro da alavanca do poder. O universo Espírito Santo não tinha apenas uma
organizada vertebração interna. Sem dúvida o seu exosqueleto era igualmente importante:
príncipes, reis e condes pela Europa figuram na lista de contactos, mas também 
administradores de instituições internacionais e grandes financeiros internacionais. Como
admitiram vários membros do "clã", aqui estava "um nome capaz de abrir portas no 
estrangeiro" e fazer "lobbying internacional" (p. 23). Mas, e isto é preciso reter, este era um
poder capaz também de tentar fechar portas. O livro recorda o episódio em que, em 2005 
e por um ano e meio, Ricardo Salgado cortou todo o investimento publicitário do GES nos 
títulos da Impresa e que depois terá tentado por meio da Ongoing, entre 2009 e 2014, 
destabilizar o grupo de Francisco Balsemão (pp. 49-50).

O carrocel das influências


 O segundo livro que queremos sugerir como excelente recurso para uma leitura calma e atenta
é "Jogos de Poder", assinado pelo várias vezes premiado jornalista Paulo Pena. O título é 
publicado pela Esfera dos Livros em Abril último, e é de notar que resulta também de um
desafio lançado pela sua atenta editora Sofia Santos Monteiro.
Trata-se aqui de um trabalho que vai para além dos intuitos descritivos e mergulha com
coragem nos domínios da explicação (o que está por trás do poder da finança?) e da 
comparação (como contrasta Portugal com a Islândia, a Grécia, Hungria, e outros países
atingidos pela crise?). É ainda um livro que junta rigor de pesquisa a qualidades literárias, um
atributo importante num tema tão árido; apresenta com vivacidade um colorido naipe de
personagens e pinta com habilidade os momentos em que os seus percursos se cruzam.
O autor tem a capacidade de fornecer continuamente dados concretos, de inserir casas 
decimais nos números, dizer as horas de dias em que certos eventos tomaram lugar, de
providenciar sempre abundante informação que permite reconstituir as suas fontes (163 notas
de fim capítulo, quase 70 referências específicas na bibliografia). Paulo Pena navega com
facilidade por entre conceitos como "imparidade", "alavancagem" e "securitização", por entre
acrónimos tóxicos como "CDO" e práticas intoxicantes como "OTC" (ou as caseiras PPP), por
neologismos como "banca-sombra" ou "bancocracia", pela etimologia de palavras como
"dívida" ou de expressões como "paraísos fiscais". O autor aperta com firmeza o cinto de
segurança ao leitor quando descola para paragens longínquas como as Ilhas Caimão ou nos
faz travar o cabriolet num dos condomínios mais discretos e exclusivos de Portugal (como a
nós de uma trama - a trama que tramou os portugueses.
O autor atribui a origem da crise à finança e não ao despesismo do Estado ou à
irresponsabilidade da população; mas não o faz como se fosse um "lugar-comum", 
documenta-o. Recorda a "crise do subprime" norte-americana e também como a banca do 
centro da Europa acaba por apertar o crédito às economias do sul. E aqui a finança 
portuguesa é uma pequenina mas útil roda numa engrenagem global, mas é também uma roda
que dá a sua dentadinha na zona de influência que lhe está consignada: a crise em Portugal
apanha os bancos portugueses entre um poder financeiro internacional a querer ressarcir-se
das consequências do seu excessivo incentivo para a especulação e um sistema económico
português que tinha sido propositadamente esvaziado da sua dimensão produtiva.
O livro aborda vários casos determinantes. Um deles é o do BCP, de onde "saem todos os
elos que explicam a crise bancária portuguesa" (p. 29). É curioso ver reflectido como aqui há
sinais de uma dinâmica geracional entre os velhos decisores (Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal)
e jovens insurgentes (em especial os promotores do movimento " Compromisso Portuga l", de
é o do BPN, que o autor mostra ser um filho da nova engenharia político-económica do Portugal
"democrático" e "de mercado". É interessante como até aqui Paulo Pena consegue resgatar
ao esquecimento iluminadoras declarações como as de Luís Filipe Menezes quando este em
Abril de 2008 se demite de líder do PSD alegando ameaças feitas por "alguns ex-ministros
que não queriam que avançasse a fiscalização à supervisão bancária." (p. 120) Outro caso é o
do BES que o autor dá premonitoriamente como mais um potencial exemplo de que "tudo o 
que julgamos sólido se pode dissolver, num ápice": fala da turbulência interna num clima em 
que as suspeitas se avolumavam em torno da ocultação de contas no exterior e de tráfico de influências (p. 193).

O triunfo dos mandantes


O terceiro livro que aqui referimos como instrutiva leitura é da autoria de três homens 
conhecidos colectivamente pela sua participação política (no Bloco de Esquerda), mas que
são individualmente destacados nos seus ofícios como economista (Francisco Louçã ),
sociólogo ( João Teixeira Lope s) e documentarista ( Jorge Costa ). É um livro que tem 
objectivos de denúncia de um capitalismo de extracção e abuso, mas esse propósito é claro
desde a primeira linha da obra e o leitor pode aplicar o seu sentido crítico. A não neutralidade
não é falta objectividade, e este trabalho demonstra que tal posição (honesta) é possível.
Este é o livro com maior fôlego (tem mais páginas que os dois acima referidos juntos), uma
extensíssima bibliografia (referências e citações contantes ao longo do texto) e um site auxiliar
onde curiosos e estudiosos podem ter acesso aos dados para tirar as suas próprias
conclusões. Não é possível dar conta aqui do imenso trabalho que foi investido nesta
investigação (forense) aos processos de acumulação de poder por parte das estruturas de
topo da economia portuguesa.
A sua tese central é talvez esta: o sucesso de negócios altamente tributários do Estado 
(mas tão mal-agradecidos) é a principal força-motriz do poder económico (oligopolista)
de um pequeno número de indivíduos e de famílias de apelido conhecido (que, esses sim,
vivem em cima das capacidades de carga dos outros).

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