segunda-feira

A autocracia de Putin e a pata na Ucrânia





O acto terrorista que abateu o avião comercial malaio com quase 300 civis lá dentro, que a semana passada descolou da Holanda com destino à Malásia, só se pode explicar dada a natureza autocrática o regime russo personificado pelo todo-poderoso, Putin. 

A correlação é evidente: Putin e as forças militares russas armaram até aos dentes os terroristas russos que em solo ucraniano praticam actos violadores da lei do país e contrariam os princípios mais básicos das convenções internacionais sobre respeito pela integridade territorial. 

O facto de o comunismo ter saído de cena, não significa que as facadas à democracia representativa e pluralista (uma miragem na Rússia) tenham abrandado. Aliás, urge referir que desde os anos 90 que a chamada transformação democrática nascente na Rússia abriu caminho ao que pode ser descrito como um sistema político czarista, no qual todas as decisões relevantes são tomadas por um homem poderoso e pela sua corte, e não pelo Parlamento, pelos partidos políticos e pela sociedade civil. 

Na prática, Putin evoca a democracia mas não a define como um conceito que comporta eleições livres e competitivas enquanto expressão da vontade popular. Ou seja, o regime só é tido como democrático na medida em que o governo consulta e ouve o povo russo, para antever o que ele quer. Contudo, o Kremlin não pensa em termos de direitos dos cidadãos mas no quadro das necessidades da população. De facto, as eleições não proporcionam uma escolha mas uma oportunidade para ratificar as escolhas feitas pelo pequeno czar, Putin. 

Ele controla todas as instituições do governo federal, desde o Executivo ao legislativo. O sistema legal é apenas um instrumento para ser utilizado contra os opositores políticos que, não raro, acabam na miséria, presos ou mortos. Por outro lado, o sistema partidário é formado por grupos e tendências que sejam todas apoiantes de Putin. Isto significa que o aparelho de poder em torno de Putin controla a maior parte dos média nacionais, em particular a televisão. Mas também controla o que se passa nas vizinhanças do Império. Após ter posto uma pata na Crimeia, Putin quer agora cindir a Ucrânia e arranjar ali uma guerra civil que torne o país em mais uma república amiga da Federação russa, como nos velhos tempos em que imperava a doutrina da soberania limitada, imposta por Leonid Brejnev na década de 70.

Putin controla o tipo de armamento fornecido aos terroristas russos que instabilizam a Ucrânia, controla o acesso ao local onde o avião foi abatido, razão por que até Merkel, as autoridades holandesas e a generalidade da comunidade internacional pedem autorização a Putin para que os acessos a essa região região se possam fazer em segurança. 

Putin controla até se os passageiros holandeses (e outros) carbonizados na sequência do acto terrorista que abateu o avião comercial - podem ou não ser devolvidos aos familiares no país de origem. Foi humilhante ver os familiares suplicar pela autorização do seu regresso, mesmo carbonizados.

Não há dúvida que a maioria dos russos parece satisfeita com o regime autocrático de Putin, que encontra similar paralelo na China. De forma diferente do velho comunismo, o aparelho de poder de Putin preserva alguma intimidade às pessoas, mas essa intimidade é imediatamente violada se as pessoas decidem contestar as medidas autocráticas de Putin. 

De modo distinto do comunismo vigente na década de 90 do séc. XX - o governo autocrático de Putin procura manter níveis de vida e de consumo relativamente satisfatórios, o que se deve a altos preços das energias, em particular o petróleo e o gás, matérias-primas estratégicas que protegem o padrão de vida aos cidadãos.

Desde que Putin pôs a pata na Crimeia, violando o Direito Internacional e perante total impunidade perante a Comunidade internacional e a paralisia estratégica dos EUA, o que frustrou as expectativas na Administração Obama, os esforços de Putin para desfazer todos os arranjos humilhantes do pós-Guerra Fria e restaurar a grandeza da Rússia - não cessam de se afirmar e têm o apoio popular. Pois só assim é que a entourage de militares, de políticos e de diplomatas que integra o inner circle de Putin entende que se consegue manter no poder. 

Não há dúvida, para Putin há uma simbiose entre a natureza do seu regime autocrático e o sucesso que tem obtido no regresso ao conceito de grande Rússia, i.é, ao estatuto de grande potência, uma realidade que se esbateu nos últimos anos. Pois é a força e o controlo interno que permitem à Rússia ser forte, agressiva e ficar impune na frente externa, como parece decorrer da invasão não declarada que a Rússia projectou sobre a Ucrânia, um país alegadamente soberano e independente, e em cujo solo se abatem aviões comerciais com civis lá dentro, e tudo parece ficar sem efeito ou consequências no plano jurídico e político, tamanha a inoperância desta Ordem internacional. 

Parece até que quanto mais graves são os crimes cometidos - directa e indirectamente - pelo poder russo personificado por Putin, maior é a sua força interna e externa, o que justifica hoje o crescente impacto internacional da Rússia e, paradoxalmente, protege a autocracia de Putin por parte de pressões estrangeiras. 

O abate do avião das linhas aéreas da Malásia que partiu da Holanda, não é senão um pequeno sintoma de que Putin (e os seus carrascos) criaram uma filosofia cuja orientação estratégica nacional correlaciona intimamente a agressividade do poder na frente externa com a autocracia no espaço doméstico. Um espaço que é, como sabemos pelas evidências conhecidas, cada vez mais alargado e cujos marcos parecem cada vez mais convergir para a citada doutrina da soberania limitada de Brejnev que Putin tenta implementar neste 1º quartel do séc. XXI.

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