sábado

Putin, a Ucrânia e a política





Não há nada como uma crise política séria para revelar a verdadeira intenção dos homens e a capacidade de liderança dos agentes políticos mais directamente envolvidos nesses processos de transição, no caso da Ucrânia que vive uma transição com violência reiterada ao logo de semanas e que contou dezenas de mortos de forma bárbara. Algo só possível em regime ditatoriais e corruptos, como foi a Ucrânia do ex-Presidente (deposto) Ianukovitch - que contou sempre com o respaldo do ditador (disfarçado de democrata) Putin, a leste.

No âmbito da Ciência Política, e dos conceitos operacionais fundamentais que balizam a sua área de estudo, podemos até afirmar que a Rússia de Putin ainda não desistiu de manter aquele velho conceito de soberania limitada do tempo de Bresniev - que entendia que nenhuma potência satélite de Moscovo (indispensável ao poderio assegurado pelo ex-Pacto de Varsóvia) se poderia autonomizar de Moscovo sem que, com isso, sofresse pesadas consequências militares. A Primavera de Praga, na então Checoslováqqquia, foi uma dessas negras manifestações de liberdade reprimidas por Moscovo ao tempo da Guerra Fria.

Entretanto, os tempos mudaram, mas algumas doutrinas geopolíticas e práticas políticas não são fáceis de esquecer ou reformar. Mas não seria tudo isto previsível atendendo à concreta circunstância de que a Ucrânia de Ianukovitch era uma autocracia corrupta?!

Se olharmos para os vários objectivos em jogo no tabuleiro de poder que se teceu, vemos uma Ucrânia emergente com vontade de fortalecer os seus laços económicos, políticos e comerciais com a União Europeia, ainda que esse novo alinhamento não exclua completamente a Rússia dessa nova relação de poderes.Tal posicionamento internacional da Ucrânia revela, apesar de todos os fracassos da Europa de Durão Barroso, que a UE ainda constitui uma plataforma de esperança para países que pretendem ser verdadeiramente democráticos, pluralistas e que respeitam os direitos humanos. Para a Ucrânia, a Europa ainda representa um poder atractivo, um modelo de desenvolvimento socioeconómico com potencial que serve de referência ao seu futuro.

Por outro lado, e como decorrência directa do pressuposto anterior, a Europa ainda é o modelo político que pode servir de garante à institucionalização da liberdade e da prosperidade, porque tem um sistema de valores e de princípios capaz de denunciar esse fracasso em caso de um regresso à autocracia corrupta, que são a natureza dos regimes cultivados e apoiados por Putin. Ou seja, é tudo aquilo que o povo ucraniano pretende rejeitar de forma absoluta e imediata, apesar das ameaças russas na fronteira da Ucrânia sob o fundamento de que as mesmas estão previstas nos acordos de cooperação  entre os dois países (David e Golias). Ao ponto a que vai a teoria de justificação em política...

Acresce uma outra razão que faz da UE um motivo de atracção para a Ucrânica, a qual consiste no próprio sistema de valores que (re)fez a Europa do pós-II Guerra Mundial, ou seja, a ideia da paz, da democracia pluralista e do rule of law. Ideias associadas ao conceito de prosperidade que, aliás, contrastam com a penúria em que o povo ucraniano vivia e dos condicionamentos e manipulações ao preço do petróleo feitos pela Rússia cuja pressão se exercia sobre a sua vítima: a Ucrânia que pretende, doravante, integrar essa grande Europa comunitária, ainda que refém da hegemonia germânica - que tem gozado de elevadas taxas de exportação, baixos níveis de desemprego, elevados rendimentos e bem-estar e que, por essa via, tem agravado as condições de vida socioeconómica em economias-parceiras mais débeis, como a economia portuguesa, por exemplo. 

Tudo agora se precipita, com a decisão firme de a Ucrânia querer aderir ao modelo de integração europeia de Bruxelas. Com isso desaparece também a possibilidade de os apoios financeiros de Putin continuarem a mascarar a corrupção autocrática do até então regime de Ianukovitch. As oposições ganharam legitimidade  interna, e a força e a persistência do povo na praça de Kiev, fizeram toda a diferença. O saldo também é doloroso... O que confirma a regra segundo a qual a democracia nunca se institucionalizou sem recurso ao sangue do povo. 

Veremos doravante como decorre o processo de democratização interno que conduzirá a eleições e de como esse processo assegura o funcionamento da economia de mercado e da regulação do trabalho e da distribuição dos rendimentos. Enfim, como decorrerá na Ucrânia os velhos problemas que assolam hoje as velhas democracias pluralistas no Ocidente. 

Uma coisa é certa: Putin não é Bresnieve, acima de tudo porque a década de 70 é susbstancialmente distinta deste novo tempo que já não permite a existência de condições para a funcionalização da velha doutrina da soberania limitada que deu cobertura ideológica e programática às operações militares repressivas do ex-Pacto de Varsóvia, em pleno contexto de Guerra Fria - de que Putin hoje sentirá uma profunda nostálgia. 

Algo que o futuro das nações e dos povos jamais permitirá. 

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