Olha o homem que não me matou!
“Olha o homem que não me matou!”
Quase 40 anos depois, José Alves Costa, o cabo que recusou atirar sobre os efectivos da coluna de Salgueiro Maia na manhã de 25 de Abril de 1974, voltou esta terça-feira a Lisboa. Vinte minutos depois de desembarcar na estação de Santa Apolónia chega ao Terreiro do Paço. Veste fato escuro domingueiro, camisa branca e gravata. Observa a praça dos ministérios. Contempla a faixa onde está a cara do capitão de Santarém, até que um grito – “olha o homem que não me matou!” – antecede um abraço único. O do então alferes António Sampaio que teve a sua Panhard à mercê do maior poder de fogo das peças do Patton M47 de Alves Costa.
“Ainda cheguei a rodar a torre, avistei os barcos (que no Tejo chegaram a apontar para terra), pensei no que ia fazer…”, recorda Alves Costa. Momentos antes, trancara-se no interior do M47, para ganhar tempo. Já não obedecera às ordens de atirar do brigadeiro Junqueira dos Reis, segundo comandante da Região Militar de Lisboa, e resistira à sua ameaça de pistola em punho. Tinha na cabeça a ordem do alferes Sottomayor: “Ninguém atira sem a minha ordem”. Sottomayor fora preso por Junqueira dos Reis – “estava fora de si” – e enviado num jipe para Cavalaria 7: “No carro ia um homem de fato castanho, um agente da PIDE”, recorda Sottomayor. E sem o seu alferes, o cabo nada fez.
Do outro lado, a pouco mais de 100 metros, Sampaio acompanhava a situação. “Sentia a vontade de ser o primeiro a dar o tiro, tinha-o no visor para destruir-lhe a peça, mas não o fiz porque não tinha ordens”, reconhece o homem da coluna de Salgueiro Maia. “Com gente conhecida faz-se uma festa, não uma mudança de regime”, ironiza o ex-alferes. E dá um exemplo. “Por comunicação interna falei com o David e Silva do Salgueiro Maia, e ele disse-me: “Vê lá o que fazes, que tenho mulher e filhos”.
A tensão acabou por se desfazer. As quatro viaturas da coluna de Cavalaria 7 nada fizeram, porque a primeira, a do cabo minhoto, não abriu fogo. “Se isto tivesse ocorrido ao contrário, não estaria aqui por desobedecer à ordem de um brigadeiro, sabia as consequências que ia sofrer”, disse nesta terça-feira em conversa com camaradas de armas.
“Foi a sapiência de evitar o primeiro tiro”, sintetizou o coronel Matos Gomes na apresentação de Os Rapazes dos Tanques. Um momento de sensatez que Amílcar Coelho, então cadete da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, o outro apresentador, resumiu numa fórmula sábia: “A coragem foi maior que o medo.” Homem humilde, como gosta de frisar, o cabo, já desenvolto em conversa com os militares da outra coluna, exemplifica: “Se nós disparássemos contra os carros de vocês era como um fósforo”.
Apesar de ter evitado o confronto, a coluna de Cavalaria 7 continuou a receber ordens. “Andei para cima e para baixo, disseram-nos para irmos para Monsanto e não fomos”, recorda o cabo. O alferes Sottomayor precisa que também houve indicações para se dirigirem ao quartel da GNR do Carmo, o que era uma impossibilidade: “Os carros não cabiam naquelas ruas”. As ordens em catadupa para um périplo desordenado eram sinal da debilidade das forças fiéis ao regime. Afinal, os 850 litros de combustível dos MP47 só davam para seis horas de motores em marcha. “Foi um dia de fome, só jantei muito à noite”, desabafa José Alves Costa. Depois da rendição da sua unidade.
Nesta terça-feira, estas histórias e outros relatos voltaram. Na coluna de Salgueiro Maia, o jovem cadete Sousa Mendes, então com 21 anos, só tarde se apercebeu da ironia que os acontecimentos lhe reservaram. Um ajuste de contas com a história. “O regime que tinha perseguido o meu avô estava caduco, senti-me satisfeito e com um certo orgulho por tomar parte no seu derrube às ordens de um grande homem”, afirma o neto de Aristides Sousa Mendes, o cônsul em Bordéus que, desobedecendo às ordens de Salazar, ajudou milhares de judeus a sair de França para Portugal.
O cabo vai ganhando à-vontade. Diz que politicamente gosta de Mário Soares, mas como Presidente da República venera Ramalho Eanes. O general esteve no lançamento do livro de Adelino Gomes e Alfredo Cunha. Adivinha-se o contentamento do cabo. Ao pisar Lisboa quatro décadas depois, recorda as visitas anuais a Fátima, as duas viagens ao Algarve. “Aqui não me chamava muito, a economia também não dava”, confessa com o gesto de dedos a indicar escassez de meios. “O 25 de Abril marcou-me muito, deu-me bastante alegria. Não fiz nada de especial, sou um cidadão normal. Quando jurei bandeira, jurei servir a Pátria”, justifica-se. E assim fez.
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Obs: Registe o gesto que revela que a coragem venceu o medo e evitou uma guerra civil de consequências imprevisíveis.
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