quarta-feira

O liberalismo da miséria - por João Cardoso Rosas



Muitos comentadores consideram que o Governo "navega à vista", que vive para o imediato, quando muito para o final do programa de ajustamento. Muita gente diz mesmo que o Governo não tem ideologia ou uma ideia forte para Portugal, que não se percebe o que pretende ou como perspectiva o nosso futuro colectivo.

Ora, esta visão é ingénua e não interpreta correctamente o modo como as ideias e as ideologias intervêm na acção política. Porque os seres humanos são "animais simbólicos" não podem existir sem ideias e isso é tão verdade na política como em qualquer outra esfera da acção humana. As ideias e as ideologias políticas, quaisquer que elas sejam, mais ou menos explícitas, mais ou menos articuladas, não são opcionais. São uma realidade permanente da acção política 

Qual é, então, a ideia que este Governo tem para Portugal, qual é o seu projecto de sociedade? Para determiná-lo é necessário ouvir os discursos, ler os manifestos, estar atento às iniciativas legislativas mais relevantes. Mas, como a ideologia política tem sempre um elemento de "falsa consciência", de encobrimento da realidade, é também necessário filtrar aquilo que é dito e não tomá-lo apenas pelo seu valor facial.

No caso do actual Governo há, apesar de tudo, um discurso revelador: o do empobrecimento. Como disse em tempos o primeiro-ministro - hoje já não o diria, para melhor ocultar a verdade - nós só sairemos desta crise empobrecendo. Ou seja, nós só conseguiremos enfrentar o problema da dívida, que estará connosco durante décadas, ficando progressivamente mais pobres. 

Se a ideia central consiste em empobrecer, o discurso que se impõe é de tipo liberal: flexibilizar o mercado de trabalho para diminuir o seu valor; privatizar o mais possível e sem perspectiva estratégica; desinvestir na saúde, transferindo custos para as famílias; gastar menos em educação e ciência, até porque um mercado de trabalho não qualificado e de salários baixos não necessita de mais gente formada e menos ainda de investigação; encarar a cultura e o património - como se viu no caso Miró - como um luxo que não podemos ter, etc.

Já sabemos que este discurso liberal é acompanhado por impostos altos, mas eles incidem sobre os rendimentos do trabalho, na medida em que se procura que o ónus da crise recaia sobre os trabalhadores, os pensionistas e os funcionários públicos, mas não sobre o capital e as empresas (que, aliás, até têm reduções fiscais).

A ideologia deste Governo é pois uma espécie de liberalismo salazarista, ou salazarismo liberal. O ideal da pobreza honrada é perfeitamente conjugado com o discurso da liberdade económica. Trata-se de um liberalismo peculiar: um liberalismo de miséria.

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