segunda-feira

A questão do financiamento da universidade DIOGO RAMADA CURTO



O Reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, disse muito recentemente que o financiamento das universidades tinha voltado aos níveis dos anos 90 (PÚBLICO, 3-2-2014). O mesmo se passava com o número de bolseiros de investigação. “Estamos a ser subfinanciados” pelo Estado, argumentou, uma vez que já se encontra esgotada a capacidade de recorrer a receitas próprias.
Para além da questão financeira, Cruz Serra é certeiro em muitos outros pontos. Por exemplo, não hesita em falar de um excesso de regras burocráticas, pouco consentâneas com a autonomia universitária. Denuncia também o envelhecimento do corpo docente universitário, com uma média de idades superior a 50 anos. Põe ainda em causa a necessidade de se fazer mais um plano para a universidade, sabendo de antemão que aquilo que mais importa são as decisões políticas. E, de forma mais pontual, mas não menos lúcida, aponta o facto de a ausência de concursos nacionais para os bolseiros implicar que estes se coloquem ao sabor das lógicas clientelares, podendo assim ser “preteridos os melhores em função dos que vão estudar com as pessoas que tiveram um programa aprovado, que podem ser boas ou não”.
O seu depoimento em modo de entrevista apresenta-se como um dos mais desassombrados do debate sobre a investigação e as universidades, iniciado em Dezembro de 2013. Mas, ao conceder uma importância central à questão do financiamento, Cruz Serra põe o dedo na ferida. É que o recuo no financiamento das universidades e da investigação está de acordo com a redução nos gastos da educação que se regista em Portugal desde 2011 (segundo dados da PORDATA). Em muitos dos casos, o Estado retira-se donde nunca esteve, a pretexto de entregar aos privados a responsabilidade e a “gestão” de parte do sistema de ensino.
Deverá, então, o Estado continuar a retirar-se do financiamento público da investigação e do ensino universitário? Será esta a decisão tomada por políticos preocupados com o despesismo público ou com os ideais de construção de uma sociedade liberal? E, última questão, se o Estado não financiar e se o mercado da educação tiver tendência a crescer, novas oportunidades poderão vir a ser criadas para um novo florescimento das universidades privadas?
Se todas estas perguntas exprimem tendências, também se pode dizer que, em todas elas, é enorme a margem para a escolha ou decisão racional. Por outras palavras, as tendências em causa – sobretudo a de que estamos à beira de uma nova criação de ofertas de ensino por parte de grupos privados – não se afiguram como algo de inevitável ou estrutural, fora do alcance do processo de tomada de decisão fundamentado politicamente.
A comparação com o que sucede com o sistema público de saúde e sua apropriação por parte de grandes grupos privados deveria ser tida em conta no diagnóstico que pode ser feito do ensino universitário e investigação. Em ambos os casos, se constata uma enorme pressão política e económica para impor critérios de boa gestão – ou seja, uma orientação para uma crescente produtividade em correlação com uma contenção de custos. Mas em ambos os casos, da saúde e do ensino, a força de tais critérios constitui-se na principal fonte de bloqueio à criação e inovação que, num clima de liberdade, pelo menos as universidades têm por missão promover. Esta constatação não é apenas uma exigência das humanidades ou das investigações filológicas, pois é extensiva a muitos outros domínios da matemática à física.
No entanto, é indiscutível que uma tal pressão transformou as relações de trabalho de professores e investigadores, e os resultados por eles alcançados, numa série de respostas a protocolos de mensuração – incluindo os critérios bibliométricos, os diferentes tipos de contagem do número de alunos e as várias rubricas dos orçamentos universitários. Protocolos esses que não só penalizam as humanidades e as ciências sociais, em relação às outras ciências, como parecem querer provar a sua inutilidade, por não responderem directamente às exigências do mercado e da economia no sentido geral. Em simultâneo, esta nova “engenharia metrológica” tem desvalorizado a produção científica publicada em língua portuguesa, demonstrando um complexo de inferioridade, tanto mais estranho porque presente em gerações que tiveram a oportunidade de estudar e investigar fora do país. Ora o mais preocupante é que a reacção de universidades, departamentos e centros de investigação a este estado de coisas tem sido frágil e, na maior parte dos casos, inconsistente.
Os mesmos protocolos são mais reveladores da obsessão pelos procedimentos administrativos e de gestão de quem os aplica – e se transformou num professor administrador destituído de qualquer capacidade para impor a sua autoridade científica no interior do seu próprio campo disciplinar – do que dos propósitos visados por um ensino universitário sustentado pela investigação, inovação e criação, apostado em valorizar a qualidade individual ou de grupo de cada pesquisa. Mais: se a quantificação dos resultados de cada professor ou investigador se tornou numa prática obrigatória do desempenho individual, departamental e disciplinar, ela não pode ser confundida com os verdadeiros critérios de avaliação entre pares, com autoridade reconhecida para o fazer.
As pontas que se encontram por atar são as seguintes: o desinvestimento público, que implicará a breve trecho um aumento das propinas e os inevitáveis aproveitamentos por instituições de crédito, cria condições para um aumento da oferta privada; o paralelo com o que sucede no sector da saúde dá-nos a conhecer a força da entrada dos privados num negócio que já foi considerado, por um dos seus representantes, quase tão lucrativo quanto a indústria do armamento; enfim, às pressões do mercado, universidades e centros de gestão respondem com protocolos de gestão, de aumento da produtividade e com sinais visíveis de utilidade económica.
Porém, tal como defendeu Stefan Collini, em What Are Universities For?(Penguin, 2012) a liberdade académica – em relação às humanidades e ciências sociais, cujo conhecimento se afigura vital na formação das novas gerações – contraria as ideologias políticas mais conservadoras, as quais impuseram às universidades um sistema coercivo determinado por interesses económicos e técnicas da gestão. Mais: a defesa da liberdade académica e de investigação, sobretudo a renovação do corpo de investigadores e de docentes com a respectiva passagem do testemunho a novas gerações, dotadas de uma preparação superior às anteriores, implica o financiamento público da universidade, sobretudo em sistemas universitários pouco sedimentados e atrasados (conforme a caracterização em que insistiu o físico José Sande Lemos, Público, 4-2-2014). Ou seja, a defesa da liberdade de investigação e de ensino supõe que o Estado – com os seus fundos estruturais – não se demita das suas responsabilidades.
Por todas as razões já aduzidas será necessário que, numa altura em que se discute o próximo quadro comunitário de apoio “Portugal 2020” se passe a falar do papel das universidades e da ciência como factores da propalada “competitividade e desconcentração”. Essencial será debater os eventuais modelos de repartição das verbas – fugindo de favoritismos sob a capa de benefícios às empresas e integrando democraticamente as opiniões de reitores e investigadores sobre esta matéria.
P.S.: É assim que penso, por paradoxal que pareça a dois defensores de um liberalismo de pacotilha que passo a nomear: João Carlos Espada e José Manuel Fernandes. Os dois licenciados pela universidade portuguesa? Pelo menos o primeiro, que foi meu aluno, tenho a certeza que obteve o diploma. Próximos de Nuno Crato, actual ministro da Educação e Ciência, na defesa do seu amigo Rui Ramos, ambos me atacaram sem nunca terem a coragem de me nomear nas páginas do PÚBLICO (27 e 31-1-2014). O primeiro imbuído de uma suposta tradição oxoniana que, de tão snob, mais parece coisa de aviário ou de neófito convertido fora de época. O segundo para se comprazer na rememoração da cloaca maximae de evocações escatológicas. Nem por sombras lhes pintarei o retrato e bem podem calçar meia branca que não me comovem. Direi apenas que a sua atitude estudada de indignação é idêntica à das vítimas ofendidas quando reagem com uma violência sem limites. Mas não resisto a perguntar: com amigos assim quem precisa de inimigos?
Historiador

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