quinta-feira

Resistência passiva. Evocação de Mohandas Gandhi






Mohandas Gandhi foi, talvez, de par com W. Churchil, uma das personalidades mais marcantes e influentes no séc. XX - de que, em certos aspectos, ainda não saímos. Liderou o movimento de independência da Índia, então jóia da coroa Britânica, para imediatamente a seguir se converter num barril de pólvora por dissidência com o Paquistão. 

Mas se essa unidade nunca foi conseguida, ficou uma lição para o mundo que, lamentavelmente, também não soubemos aproveitar. Refiro-me ao conceito de resistência passiva, exercida de modo não violento em ordem a atingir um objectivo sociopolítico, que vai da rejeição de um imposto sobre o sal à independência da colónia do então maior império do mundo, o Império britânico que tinha a maior frota naval e era dona dos mares. 

Gandhi ensinou aos indianos, e também aos africanos, que nunca levaram a peito essa teoria e práxis política (situação que descambou em guerras civis), que o protesto simbólico de não cooperação política, económica, social e moral para com a força opressora, culmina na chamada desobediência civil. Aqui a particularidade reside no não recurso ao mecanismo da violência. 

Um exemplo dessa desobediência civil poderá ser ilustrado com o exemplo do Nelson explicitado aqui. O Nelson não tem dinheiro, por isso tenciona ir buscar o quilo de arroz sem pagar. Será isto legítimo?

Naturalmente, num país em acelerada desagregação política (segurada constitucionalmente apenas por Belém), social e económica, profundamente dependente do exterior para se financiar, tenderá a ser imaginativo e criativo nas formas e modalidades que as estratégias de mudança social irão aconselhar os portugueses a desenvolver para combater um governo impreparado que já deu provas de não saber governar, nem de estar à altura dos desafios.

Atendendo ao contexto nacional de decomposição do Estado, cujas políticas públicas permitiram que se agravassem todos os indicadores micro e macro-económicos (desemprego, défice, dívida, natalidade, emigração, investimento público, etc) - é de admitir, pela força dos factos, que novos métodos de resistência passiva em Portugal estejam em gestação. Até pela ilegítima e imoral carga fiscal que o governo faz incidir sobre os segmentos da população menos afortunada e que, por  isso, vive com mais dificuldades. 

Neste colete-de-forças político, não surpreendem os protestos artísticos, mais invasões pacíficas de ministérios por parte de sindicalistas, operários e funcionários públicos descontentes, boicotes a certas medidas sociais, sabotagem de equipamentos, greves e um conjunto de acções directas não previstas e que dependem da criatividade do momento, como guerra de informação contra páginas web governamentais ou outros sítios que os novos protestantes considerem adequados ao fim em vista.

Tomando o exemplo inicial de Gandhi, que conseguiu obrigar o Império de Sua Majestade a fazer reformas e mudanças inesperadas até à concessão da independência final, em 1947, os portugueses mais desesperados e imaginativos poderão desenvolver um pacote de medidas contra o actual governo de forma a paralisar globalmente a sua acção. De resto, as próprias polícias, combinadas entre si, já deram um forte sinal dessa vontade nas escadaria do Parlamento. O precedente foi aberto, a barreira foi ultrapassada e as pessoas lembrar-se-ão disso quando outras iniciativas do género estiverem na calha.

É certo que Gandhi foi assassinado, e Martin Luther King, nos EUA, também conheceu o mesmo destino. Mas sobreviveram as ideias que defenderam. Este empenhou-se em resistir nos serviços de transportes públicos como forma de acabar com a descriminação racial; Gandhi, consabidamente, recorreu à produção clandestina de sal a fim de protestar contra o imposto iníquo sobre o sal na velha jóia da coroa, então sob domínio colonial. 

Animado por esta filosofia de acção não violenta, quem nos garante que depois de o Nelson cumprir a sua palavra dezenas, centenas e milhares de portugueses, em igual condição, ou em piores condições ainda, não lhes seguirão o exemplo. Um rastilho que, pela via da consciencialização do oprimido, irá incendiar moralmente o Portugal profundo e acordá-lo da letargia em que vive sob esta ditadura das finanças da troika a  que cegamente obedece um governo sem preparação, incompetente, insensível, imoral e injusto. No fundo, um governo por todos indesejado. 


Os portugueses que toleram este agrilhoamento durante dois anos, sendo esbulhados fiscalmente como nunca foram na sua história (do último século) - poderão, eventualmente, ser os mesmíssimos portugueses que, de forma disciplinada e criativa, advogam a utilização massiva da técnica da resistência passiva como forma de libertação moral, política e cultural. 

Sabemos que as greves de fome implicam riscos de vida que hoje dificilmente as pessoas não aceitam, porque já sentem a profunda injustiça aplicada pelo governo, e querem sobreviver-lhes. Portanto, o recurso às greves são uma condição necessária, mas não suficiente para se atingirem os objectivos desejados, que é a mudança sociopolítica. 

O recurso à inércia física em massa, usada noutros países, em hospitais, em ministérios, em escolas, em centros de saúde, em vias públicas interrompendo o trânsito - constitui um outro conjunto de medidas mais gravosas a que, um dia, os portugueses mais desesperados podem recorrer. Alguém conseguirá prever quais os efeitos, por exemplo, de uma greve sentada, em que centenas de pessoas impedem a entrada dos administradores e gestores de topo nas respectivas instalações das empresas e fábricas onde trabalham?! 

Generalizando o método a todo o país, como é que o Portugal-oficial reagiria se em cada fábrica, em cada repartição de serviço público, em cada direcção-geral se perfilasse um cordão humano a bloquear a entrada e saída dos responsáveis?!

Numa situação limite, que esperemos não venha a ocorrer, imagine-se o cenário de sequestro de um ministro (com o pedido de resgate a reverter para a Santa Casa da Misericórdia ou para a AMI), ou de um seu familiar (por este valer mais)!? Podemos chegar a este trágico-caricato!!

Não devemos esquecer que há fome em Portugal, e as pessoas desesperadas são capazes de tudo. E como já nada têm, nem sequer almejam em ter um futuro perene, porque já perderam a esperança e a fé, a vida para elas consiste apenas naquele minuto, naquele instante. E é nesse fragmento de tempo que muitas decisões  trágicas têm lugar, como por fim à vida ou, no limite, acabar com a vida de terceiros: individual ou colectivamente.

Tirando casos pontuais da nossa história, como o de Miguel de Vasconcelos (ao serviço dos filipes), que odiado pelo povo foi defenestrado e lançado pela janela, e do regicídio do rei D. Carlos, na Praça do Comércio, em 1908, e de umas bombinhas com escassas mortes no PREC - não temos grande tradição de violência política. 

Mas a história das nações está em constante mutação, o seu povo também assume características identitárias que estão sempre em mutação, de modo que nada, hoje, é estável, previsível e seguro. No fundo, tudo hoje é como as taxas de juro, o mercado laboral, o preço dos combustíveis neste carrossel de incerteza, e a forma como o XIX Governo (in)Constitucional esbulha um povo sacrificado por erros de gestão política, que os próprios políticos não querem reconhecer terem sido os verdadeiros autores, daí transferirem a factura para o zé povinho, pode significar, a prazo, uma autentica tragédia e um banho de sangue.

Só um povo que está farto de ser humilhado e vilipendiado, pode,  um dia, surpreender. E quando isso ocorrer não faltarão psicólogos e historiadores a teorizar a mudança súbita da personalidade colectiva dum povo em fúria que, afinal, foi muito para além das técnicas de resistência passiva utilizadas há 70 anos por Mohandas Gandhi. 

Admitindo, em tese, que isso um dia possa ocorrer, ainda que indesejável, nem por isso os portugueses poderão vir a ser considerados inimigos da Humanidade, porque a sua luta, afinal, fez-se em nome de valores e de princípios que  a servem. 
           
           
       

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