terça-feira

Quem é o canalha dos nossos tempos - por Luis Flávio Gomes -



Quem é o psicopata/canalha dos nossos tempos?

No campo político a canalhice se apresenta de forma mais sorrateira: é canalha, por exemplo, o político que faz um duro discurso punitivo, que propala aos quatro ventos a festa da vingança, com o único propósito de manipular a vontade da opinião pública, muito suscetível a esse tipo de discurso, para ter o prazer de ver outras pessoas castigadas.

Artigos do prof. LF
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LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidades do direito.com.br. Estou ao vivo no portal e TVAD.
 Convido o estimado leitor a ler o texto abaixo (trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, no prelo, com notas de minha autoria) para bem compreender quem é o psicopata/canalha dos nossos tempos. Trata-se de um perfil mais comum do que parece. Está presente, por exemplo, em todo crime organizado, seja no privado (tipo PCC), seja no misto (que envolve os interesses privados e os públicos, tal como o que acontece nas concorrências públicas). Por detrás do crime organizado sempre tem um canalha, que manipula a vontade de outras pessoas.
 No campo político a canalhice se apresenta de forma mais sorrateira: é canalha, por exemplo, o político que faz um duro discurso punitivo (chicote em todo mundo), que propala aos quatro ventos a festa da vingança (Nietzsche), com o único propósito de manipular a vontade da opinião pública, muito suscetível a esse tipo de discurso, para ter o prazer de ver outras pessoas castigadas.
 Vamos ao imperdível texto de Juan Pablo Mollo (O delinquente que não existe, no prelo), observando-se que tudo que está entre colchetes é de minha autoria:
 “O canalha é aquele que, sabendo captar as crenças e o ponto de satisfação do outro, exerce promessas, ameaças ou expectativas em forma explícita ou implícita por meio das quais consegue o consentimento e a cumplicidade do outro. Por isto, propõe-se como um líder nato para hipnotizar ao neurótico vacilante, que prontamente se converterá religiosamente ao regime do psicopata e suas ambições pessoais. Sem dúvida, o canalha não faz a cooptação de voluntários repressivamente, mas com seu carisma e capacidade de persuasão atrás de seus pretextos discursivos variáveis. O canalha bem-feito não crê em nenhum ordenamento social ou cultural e consegue uma postura de certeza para conseguir sua própria satisfação à custa dos outros”.
 “Um canalha que sempre encontra justificações para seus atos, sem culpa nem responsabilidade alguma, pode ser perfeitamente compatível com a normalidade social, a política e o poder. Torna-se frequente que o canalha se mascare atrás de uma autoridade em que não crê, e a partir daí comece a exercer uma influência sobre o outro. Certamente, os indivíduos manipuladores do desejo não se correspondem com o delinquente comum nem com o assassino criminoso, mas com pregadores, pastores, dirigentes, terapeutas, líderes, políticos etc. A respeito, pode se distinguir o pequeno e ambicioso canalha imerso numa lógica de êxito e fracasso de um canalha maior que, sobre o império e destruição do desejo próprio e alheio, estrutura-se no exercício do poder para manejar as realidades dos outros. O perfeito grande canalha é um poderoso como Stalin, o homem de aço, intocável, fechado em si mesmo, sem escrúpulos nem decência, sem vacilação nem defeito em vida [nessa mesma linha está Hitler]. O esplendor do canalha e seu brilho maléfico provêm de não aceitar nem o Outro com maiúsculas, que não é mais que uma ficção, nem os outros semelhantes, que não valem nada”.
 “Assim, o canalha de nossos dias é o líder de organizações criminosas cuja atitude é introvertida, misteriosa e planejada. Portanto, não é o delinquente comum que rouba o automóvel, mas o administrador do desmanche e do dinheiro daqueles que trabalham para ele ou o delegado de polícia corrupto que manipula o delinquente a partir da autoridade estatal. A pessoa de colarinho branco oculta detrás dos ilícitos é o psicopata que não age, senão que faz agir os demais [como se vê, o delinquente comum não é o canalha que está por detrás da organização, que manipula a vontade dos outros]”.
 “Por outro lado, ofuscado pela ambição, o político corrupto não deixa de camuflar-se nos governos democráticos, nem de delinquir, nem de fingir ser um homem trabalhador e honesto para aprisionar o desejo dos outros. O psicopata de nossos dias é compatível com a figura do homem de negócios, o homem mundano, o cientista, o juiz ou o psiquiatra: sua fachada é normal, porém é a típica máscara do psicopata. A máscara vela o interesse particular oculto. Assim, atrás das sublimes frases ideológicas do líder político, da demonstração objetiva do especialista ou da hipnose grupal do pastor, ocultam-se os interesses ególatras, a violência e as brutais pretensões do poder. O psicopata político, o homem do poder ou o narcotraficante extraem um ganho pessoal sobre o sacrifício dos demais”.
 “Em suma, e para além das figurações, o psicopata ou canalha é aquele que sabe que o Outro da lei é um semblante e não se detém na manipulação dos outros, nem em seus interesses, ambições ou ações de prazer (Lacan). Um canalha bem-feito realiza suas ações sem sustentar-se em nenhum ideal e sem impedimentos, isto é, não se situa como sujeito de nenhuma lei ou posicionado como culpado/culpável, mas que avança sem obstáculos nem inibições para sua condição absoluta de prazer. É aquele indivíduo que, independentemente de qualquer distinção social, pretende existir por fora de toda lei ou norma, na que não crê, exceto quando ocupa um lugar de poder e impõe as regras para os demais”.
 “Então, a grande canalhice é a ciência estabelecida totalmente como verdade pelo mercado multinacional, captando o desejo de todos e propondo-se como o novo chefe globalizado sob a forma tecnológica. E não parece existir alguma política que apresente as condições para estabelecer um limite ao desencadeamento da tecnociência e o sistema avaliativo na construção da realidade. Por outro lado, existe a canalhice filosófica como um saber sistemático que se propõe como verdadeira para os demais, e também a canalhice jurídico-penal, que mediante intelectualizações acadêmicas sobre a pena tem ocultado desde sempre a irracionalidade do poder punitivo para sustentar uma ordem desigual e injusta”.

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