sexta-feira

Poema do Futuro - por Rómulo de Carvalho -


Poema do Futuro
Conscientemente escrevo e, consciente, 
medito o meu destino. 

No declive do tempo os anos correm, 
deslizam como a água, até que um dia 
um possível leitor pega num livro 
e lê, 
lê displicentemente, 
por mero acaso, sem saber porquê. 
Lê, e sorri. 
Sorri da construção do verso que destoa 
no seu diferente ouvido; 
sorri dos termos que o poeta usou 
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo; 
e sorri, quase ri, do íntimo sentido, 
do latejar antigo 
daquele corpo imóvel, exhumado 
da vala do poema. 

Na História Natural dos sentimentos 
tudo se transformou. 
O amor tem outras falas, 
a dor outras arestas, 
a esperança outros disfarces, 
a raiva outros esgares. 
Estendido sobre a página, exposto e descoberto, 
exemplar curioso de um mundo ultrapassado, 
é tudo quanto fica, 
é tudo quanto resta 
de um ser que entre outros seres 
vagueou sobre a Terra. 

António Gedeão, in 'Poemas Póstumos

'

Etiquetas: ,