quinta-feira

Na guerra da Síria vale tudo. Putin e os Direitos Humanos. Evocação de Anna Politkovskaia



Putin tem sido bafejado pela sorte ou, se quisermos ver a coisa por outro prisma, pelo azar dos EUA. O aspecto mais sintomático dessa sorte de Putin foi a fuga de Edward Snowden para a Rússia, onde obteve asilo e lá procura restabelecer a sua vida com os segredos que levou da América, embora os procure utilizar não para refazer a Guerra Fria, mas, como diz Putin, em prol dos direitos humanos. Assim sendo, o mais curioso desta nova relação no quadro das relações internacionais, em particular no âmbito das relações russo-americanas, é que há um fundo de verdade nesta declaração, embora a última pessoa que tinha legitimidade para a fazer seria, precisamente, Putin (pelo seu historial de desrespeito em matéria de direitos humanos, em particular das minorias). 

Todavia, o ambiente das relações internacionais é, mais uma vez, convergente com as posições de Putin e crítico para a América de Obama. Aproxima-se a reunião do G20, em SamPetersburgo, que terá como quadro as tensões entre a Rússia e os EUA por causa da eventual intervenção militar desta na Síria, um aliado tradicional da Rússia na região do Médio Oriente e que envolve, mais alargadamente, as relações com o Irão e Israel, ou seja, o quadro de relações internacionais regionais é altamente explosivo pelas alianças e contra-alianças que existem na área e que contrapõem as visões e os interesses dos EUA (aliado de Israel) com os da Rússia (aliado tradicional da Síria e Irão) na área. 

Para agravar esta tensão, há o factor Snowden, já bem conhecido de todos, um ex-colaborador da CIA que se refugiou na Rússia (após estar um mês na zona de trânsito do aeroporto de Moscovo) a fim de escapar à justiça norte-americana e após ter revelado ao mundo, um pouco como fez o Wikileaks, que a América oficial de Obama (curiosamente o 1º negro da história da América que chegou à presidência da Casa Branca), utilizava as suas agências de informação para espiar as comunicações dos cidadãos de todo o mundo, incluindo os próprios americanos e europeus (aliados), especialmente ao nível da União Europeia. 

Uma razão de monta para envergonhar Obama aos olhos do mundo e, ao mesmo tempo, conceder legitimidade a Putin - esse "grande arauto" dos direitos humanos - para afirmar que Edward Snowden é um defensor dos direitos humanos que, na prática, os EUA violam grosseiramente através das suas agências de informação e das empresas que desenvolvem esse tipo de coberturas para actuar ocultamente.

Em abono da verdade, nada, até ao momento, faz crer que a actuação de Snowden é fragilizar a América e beneficiar a Rússia através de segredos industriais, militares, políticos ou de natureza similar (seguindo o figurino da Guerra Fria), pelo que tudo indica que aquele agente de informações tem um objectivo benévolo relativamente aos cidadãos do mundo inteiro, que é libertá-los das escutas que representam uma violação grave aos direitos, liberdades e garantias de informação e comunicação de qualquer cidadão, em qualquer parte do mundo deve ter. Facto que enfraquece ainda mais a América de Obama - que não vê (ou não pode ver) naquele trânsfuga um espião clássico que veio do leste e intenta contra os arcana imperii da República Imperial, como designava Raymond Aron. 

Pois tudo indica que Snowden pretende mandar abaixo essa barreira da espionagem que a América exerce sobre os seus próprios aliados e os seus concidadãos, e transformar este mundo num mundo melhor. 

Só é pena, do lado de Putin, que aqui potencia todo o cinismo possível no quadro das relações internacionais e bilaterais, que ele não tenha revelado o mesmo respeito para com a jornalista Anna Politkovskaia, abatida a tiro no elevador da sua casa, em Moscovo. Tratou-se duma jornalista que fez jornalismo de investigação, transformando-se num exemplo de coragem e determinação pela luta dos Direitos Humanos ao escrever e denunciar os assassinos e espancamentos de civis pelo exército russo na república separatista da Chechénia. Um crime que teve um efeito claro: calar para sempre as vozes de outros jornalistas que procuravam seguir o mesmo tipo de jornalismo de investigação que teriam de pagar com a vida a seriedade do seu próprio trabalho. Um preço demasiado elevado, convenhamos. O que permitiu instalar a censura na Rússia. 

Ao menos, conforta-nos saber que Politkovskaia recebeu vários prémios (Caneta de Ouro, Pen Club International e o prémio Jornalismo e Democracia da OSCE). Com estes factos apenas se procura lamentar o esquecimento, ou a memória selectiva, de Putin ao evocar o novo herói dos Direitos Humanos na pessoa de Snowden, hoje à sua guarda e irritando uma América indefesa, e omitir (criminosamente) a memória daquela jornalista que fez tanto pelo mundo em matéria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos e pagou essa factura com uma bala na cabeça. 

Há coisas que nunca devemos esquecer, e espero que a inteligência de Obama não seja tão selectiva quanto o tem sido a memória de Putin. 





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