terça-feira

Hanna Pitkin e a sua importância conceptual



Quando evocamos o legado de Hanna Pitkin, uma especialista em Teoria 
Política compreendemos que as duas ideias que a autora desenvolveu
emergem em conflito entre si: a democracia e a representação no âmbito da
história política moderna que formatou a emergência e consolidação do Estado
nacional de base territorial. Quer dizer, a democracia nasceu na Grécia Antiga,
foi conquistada através da luta de baixo para cima.  Inicialmente com uma
base participativa que não tinha qualquer relação com aquilo que veio
depois a afirmar-se e a consolidar-se como a democracia representativa, i.é, 
num mecanismo em que as populações delegam noutros, os eleitos, o poder
de as representar. Foi, aliás, este o mecanismo que ganhou expressão na
Guerra Civil inglesa e depois consolidou-se nas chamadas revoluções
democráticas no séc. XVIII (norte-americana, inglesa e francesa) que
influenciaram toda a vida Moderna e Contemporânea. Contudo, se olharmos
para o que se passa hoje no interior de inúmeras sociedades europeias
facilmente constatamos o divórcio crescente entre aqueles dois conceitos,
os quais tiveram uma história distinta e até conflituante. Espanha, Portugal, 
Itália, só para citar alguns países europeus (nem quero citar a Grécia, berço da
civilização!!!), estão a conhecer esse divórcio entre a democracia e a
representação, na linha do pensamento da autora citada, Hanna Pitkin,
em particular por referência à sua obra mais citada, The Concept of 
Representation (1967). O que se verifica nesses países, com particular
acutilância em Portugal, é que o governo legitimamente eleito e, portanto,
com uma base democrática, não consegue assegurar índices mínimos de
representatividade junto dos cidadãos que estão cada vez mais de  costas
voltadas para o poder legítimo (pelo título), mas não pelo exercício do
poder. E a razão de ser deste divórcio, que tende a evoluir para um conflito
social efectivo, decorre da brutal carga fiscal, das erradas políticas públicas,
da impreparação técnico-política do primeiro ministro e de inúmeros dos seus
ministros, e, por todos, duma falta de visão de conjunto que aponte um
caminho de esperança aos portugueses e que os faça crer que o projecto
nacional designado Portugal faz sentido e vale a pena. Na prática, o governo
ocupa os lugares do poder, os ministros têm gabinetes, carros oficiais e
motoristas (a ganhar cerca de 2000 € por mês) mas, em rigor, as políticas
públicas que deveriam alavancar a economia e a sociedade nacionais, não
existem. E não existem porque se verifica uma congénita inaptidão para
planear e tomar boas decisões. Porquanto aqueles que ocupam os altos
cargos do poder não possuem as competências técnicas necessárias bem
como a sabedoria prática da experiência e o conhecimento dos precedentes
históricos que a complexa tarefa da governação exige. Assim, o governo
(português), em lugar de ser o guardião das instituições e das normas
que regulam os equilíbrios sociais, é o primeiro a implodir esse delicado
balanço político e jurídico-constitucional. E porquê? Porque temos um
primeiro ministro ignorante, funcionalmente impreparado que não 
reconhece esse facto e, como tal, também procura eximir-se à
responsabilização da má governação de que é o primeiro e o último
responsável. Embora com a legitimidade democrática das eleições, o actual
XIX Governo Constitucional é um pássaro ferido de morte, na medida em que 
a legitimidade do exercício do poder impõe que qualquer organismo
meritocrático seja regularmente arejado, de modo a evitar ficar anquilosado,
penalisando milhões de portugueses com essa incompetência. Ora, é por
causa dessa estrutural incapacidade de governar e de liderar que há na
sociedade portuguesa cada vez mais a tendência para que se consume o
divórcio entre aqueles dois conceitos - a democracia e a representação -
que foram sabiamente estudados por Hanna Pitkin, no sentido de virmos
a confirmar, e não sem elevados riscos de conflitualidade social, o
afastamento entre o sentido frágil duma democracia doente (que escolhe o
Tribunal Constitucional para bode expiatório) e a crescente sub-representação
política, já que se quebrou o elo psico-afectivo entre os eleitos e os eleitores
nesta democracia do imposto que nos tem sido imposta por um conjunto de
pessoas que pensa que a governação é um exercício de experimentalismo
permanente. O primeiro ministro deve saber, ou melhor, devia ter estudado
primeiro para saber, que o principal desafio na concepção de um sistema de
boa governação é protegê-lo da influência de interesses especiais, i.é,
das corporações que sequestram os bens públicos em interesse próprio, bem
como defendê-lo das políticas dominadas pelas pressões populistas de curto
prazo, ou ainda da obediência a uma Alemanha que dita as regras do jogo
em toda a Europa nas costas dos parlamentos nacionais, logo dos cidadãos.
Felizmente que hoje as redes sociais podem denunciar estas limitações,
erros, incapacidades. Não com o objectivo de criticar por criticar, mas de
procurar identificar um caminho alternativo para que as democracias possam
garantir um novo contrato social, ou seja, atinjam um novo quadro de
consentimento e responsabilização por parte dos agentes políticos. 
Por vezes, há que evocar as grandes obras para sublinhar a actividade dos
governos medíocres, e o recurso leve que aqui faço a Hanna Pitkin inscreve-se
nesse contexto. Espero que ela me perdoe já com a sua proveta idade. 

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