sexta-feira

Portugal vive um estado de necessidade no contexto de legalidade de crise e de legalidade paralela



Consabidamente, o país arde. Arde em todo o lado: florestas e matas, justiça, educação, desemprego, saúde, ambiente e ordenamento do território, etc. Diria que não há uma única área da sociedade e da economia em Portugal que esteja normalizada, facto que nos impede de produzir e competir com os sectores congéneres na Europa, daí o nosso gap

O desinvestimento em todas e em cada uma destas áreas é brutal  e provoca danos sociais consideráveis. A demonstrar esses danos estão os indicadores que empiricamente vamos apreendendo em cada uma daquelas áreas de actuação governamental: a destruição de emprego, a falta de Investimento Directo Estrangeiro, a negação da justiça que empanca tudo, o desprezo pela gestão ordenada do território (gerador de profundas assimetrias regionais e desertificação do interior do país), a violação das normas constitucionais representam, no seu conjunto, défices democráticos e constitucionais graves como nunca existiram no pós-25de Abril. Isto é simultaneamente causa e sintoma duma doença profunda de falta de verdadeiras lideranças e de elites políticas responsáveis e competentes.

E é este o estado a que chegámos, quase 4 décadas depois da Revolução dos Cravos. Atingimos o chamado estado de necessidade em todos os sectores e domínios de actividade em Portugal. No caso particular dos incêndios, que tragicamente continuam a matar bombeiros em Portugal e a destruir as nossas florestas, vivemos um grosseiro estado de necessidade, o qual está previsto tanto no Direito Civil como no Direito Administrativo. Naquele caso, deve considerar-se lícita a acção de um agente que danifica ou destrói coisa alheia com o fim de remover um perigo actual de um dano manifestamente superior. Se o perigo tiver sido causado por culpa exclusiva do agente, ele deve indemnizar o lesado pelo dano que causou; mas se não houver culpa exclusiva do agente - como procede em casos de desastres naturais - o tribunal deverá fixar uma indemnização equitativa, a pagar pelo agente e todos aqueles que tenham contribuído ou tirado proveito desse estado de necessidade. 

Significa isto que, mesmo em estado de necessidade, os danos causados pelos agentes devem ser ressarcidos aos respectivos proprietários. Vem isto isto a propósito, já se vê, dos incêndios e do estado desgraçado em que se encontram as florestas e matas nacionais (excepto as que são asseguradas por gestão privada que produzem para a indústria de celulose), as quais por falta de gestão adequada ardem facilmente, inexistem acessos que permitam combater os fogos e, não raro, as casas e os bens das pessoas e das empresas encontram-se nas imediações desses poços de combustível verde  - a que os serviços competentes do Estado (Ambiente, Ordenamento do Território, Agricultura e afins) - por incúria, incompetência e falta de planeamento, não fiscalizam.  O resultado está à vista todos os anos. 

Neste quadro negro, é legítimo perguntar-se por que razão "a tropa" já não se encontra no terreno há mais tempo, com os seus equipamentos e meios de transporte de engenharia pesada para rasgar acessos, especialmente onde a orografia do terreno é mais acidental, e ter um papel efectivo (e coadjuvante) no combate aos incêndios juntamente com os bombeiros? Estar nos quartéis "sentado à manjedoura do Estado", como diria Francisco Sousa Tavares, é pernicioso e antipatriótico. 

Em reforço do que dissemos acima, recorremos a Diogo Freitas do Amaral e Glória Garcia para explicitar, no âmbito do Direito Administrativo, como é que se justifica o chamado estado de necessidade, pelo que são três os pressupostos de verificação administrativa: 1) a excepcionalidade da situação, definida pela desarticulação social inconciliável dos poderes públicos normais; 2) a urgência ou natureza inadiável das actuações administrativas; 3) a natureza imperiosa do interesse público susceptível de sacrificar o interesse da legalidade. Conforme defendem aqueles dois autores em "O estado de necessidade e a urgência em Direito Administrativo", in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59, Abril 1999, pág. 487.

Ora, parece evidente que aqueles três pressupostos se verificam quando confrontamos a realidade actual em matéria de "planeamento" (inexistente) de combate aos fogos em Portugal. A opinião geral, e até aquela que é oriunda de alguns meios mais especializados, é que graça o desnorte entre as autoridades competentes, a descoordenação e impera o casuismo com as declarações públicas de pesar do costume e que as televisões, diariamente, mostram e documentam à saciedade. 

Como dissemos acima, os desastres naturais e, in concreto, os fenómenos como os incêndios, que são eventos mitigados em que concorrem aspectos naturais (dinamizados por eventos meteorológicos extremos) e também aspectos relacionados com a intervenção humana de origem dolosa, ou seja, com uma intencionalidade criminosa, que parece já ser expressiva em Portugal, integram circunstâncias nas quais fará sentido invocar o estado de necessidade pela inexistência de alternativas viáveis, dentro do cumprimento da lei, a fim de responder aos incêndios em Portugal, conduzindo, assim, o Estado e a sociedade no seu conjunto, a uma espécie de legalidade de crise ou legalidade paralela - distinta da legalidade vigente - para responder eficaz e eficientemente aos problemas. 


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