quinta-feira

Dívida, Capitalismo e Insubmissão - por Gustavo Cardoso -



Precisamos de deixar o actual Estado de Submissão e adoptar um novo Estado de Insubmissão. Precisamos primeiro definir os valores que queremos defender e depois as acções políticas a desenvolver - e não o contrario. No ano novo são precisas ideias novas com urgência absoluta.in Público
 
Ano Novo, ideias Novas. Vivemos num curioso momento histórico, como lembra David Graeber no seu “Debt. The First 5000 years”. Um momento em que a crise financeira nos mostrou que o capitalismo não pode operar num mundo onde as pessoas acreditem que ele existirá para sempre. Pois acreditar que o capitalismo será um modelo económico eterno implica que exista sempre a possibilidade de se obter facilmente crédito. E nós –pelo menos no sul europeu – sabemos em primeira mão que o crédito abundante tem limites.
 
Na sua análise Graeber também lembra uma outra curiosa evolução no contexto do capitalismo: o desenvolvimento de uma moral de culpa para os devedores e o abandono do questionar da moral daqueles que, noutros contextos históricos, seriam considerados agiotas pelos juros praticados e que incorreriam num pecado de usura excessiva.
 
Procurando um contexto histórico similar ao que actualmente vivemos na Europa, em termos da primazia do mercado e da legitimidade do comércio sobre outros valores morais, só me ocorre uma analogia com as Guerras do Ópio travadas no século XIX pelo Império Britânico contra a proibição de comércio daquela mercadoria no então Império Chinês.
 
O que é interessante para nós hoje relembrar é que também na Guerra do Ópio pouca atenção tiveram as questões morais numa guerra pela liberdade comercial de venda do ópio inglês aos chineses - e ao qual se opunha o governo chinês. A questão não era se o comércio do ópio devia ser considerado como lícito ou não, mas sim que a liberdade comercial de transacionar bens se sobrepunha a considerações morais sobre a mercadoria.
 
Hoje estamos de algum modo em situação similar no sul da Europa. Há uma discussão moral sobre o dever do sul “honrar”os pagamentos das dívidas aos mercados do norte, mas não se questiona se moralmente o sul deveria pagar ou não. Tal como no comercio do ópio, também quem nos mercados a norte emprestou ao sul sabia que o excesso de crédito era nocivo, pois criava adição e não seria possível pagá-lo. Nem com as taxas de crescimento de então nem com aquelas que as tendências futuras observáveis previam. No entanto, continuou-se a oferecer financiamentos a taxas baixas, pois uma vez viciado em consumir bens, provenientes na sua maioria também do norte, o sul não pararia tal prática - quer no consumo dos agregados familiares quer no investimento empresarial e público.
 
O que está em causa nesta análise não é o incentivar algum país do sul a não pagar as dívidas, pois no actual sistema da União Europeia tal seria suicidário. Mas George Soros tem razão quando propõe o perdoar da dívida a todos os países do Euro, desde a Alemanha até Grécia, na proporção dos erros económicos nacionais derivados das fragilidades de criação do Euro – algo em que os países do Euro partilham culpas em parcelas iguais.
 
E agora? Sabemos hoje quais as causas da crise e vemos os diferentes governos europeus com um consenso sobre que ferramentas e instrumentos são necessários para prevenir que o sucedido não se repita - em particular no sistema bancário. No entanto, ao mesmo tempo que olhamos para essa concordância –por vezes mascarada de discordância por conveniência negocial e gestão de interesses nacionais de curto prazo –verificamos que todos os governos (sem excepção) perderam totalmente a capacidade de iniciativa política. Deixaram de ser capazes de se questionar sobre em nome de que ordem mais elevada agem. A resposta recorrente entre todos tende ser simplesmente “agimos assim porque necessitamos de agir desta forma”. A uma inquirição mais aprofundada ser-nos-árespondido que tal é o produto do acordado com instituições internacionais - onde curiosamente quem tem mais poder de decisão são também os países do norte, pois são os que mais contribuem com verbas para os orçamentos ou para as linhas de crédito dessas instituições.
 
Mas como reagiriam os nossos governantes europeus à seguinte pergunta: visto ser impossível manter a capacidade de crescimento perpétuo num planeta finito, podemos assumir que, dentro de uma geração ou 25 anos, o capitalismo (o modelo actual de capitalismo ou talvez mesmo o próprio modelo cultural económico, isto é o Capitalismo com “C”grande) não existirá mais?
 
É certo que poderemos continuar a ter capitalismo sem crescimento perpétuo. Mas o problema reside em que sem crescimento perpétuo não é possível anunciar às populações europeias que um dia retomaremos os consensos quebrados. Ou seja, que havendo aumentos de produtividade tal implicaráum regresso aos aumentos de salários generalizados. Sem crescimento perpétuo, quanto muito, continuaremos a assistir a que apenas quem gere empresas e quem é accionista maioritário recolherá os louros dos lucros. Nem quem possuía propriedade dos bens de produção –sob a forma de capitalismo popular, sendo pequeno accionista - nem quem é "trabalhador-colaborador" pode esperar retomar essa dimensão da justiça social - e ainda muito menos aqueles que tardiamente chegaram ao mundo do capitalismo global em países como a China ou o Brasil.
 
No mundo que estamos actualmente a gerir, haverá lugar para alguns mas não para todos. É por isso que este é actualmente um modelo impossível de prática capitalista. Na governação ninguém sabe bem o que fazer, por isso faz-se o que se acha ser necessário para se voltar ao mesmo que se fazia antes, na vãesperança que tudo volte a ser como foi. Mas não voltará. Porque as condições necessárias para se ser o que já se foi deixaram de existir.
 
Do consenso quebrado entre mais produtividade equivaler a maiores salários, à segunda quebra de consenso quando terminou a capacidade de distribuir crédito para aquisição generalizada de propriedade, não hámais consensos para serem partilhados entre quem trabalha e quem controla o acesso ao capital financeiro. E no meio estão os governos que, sem começarem a olhar em volta para os novos valores sociais a despontar, não conseguirão por muito mais tempo manter a paz social. Não teremos na Europa guerras entre países no médio prazo, mas talvez venhamos a ter velhas guerras de classe, opondo todos aqueles que querem ver melhorada a sua vida e os que querem melhorar a sua vida a custa de não melhorar a de todos os outros. É por isso que precisamos de deixar o actual Estado de Submissão e adoptar um novo Estado de Insubmissão. Precisamos primeiro definir os valores que queremos defender e depois as acções políticas a desenvolver - e não o contrario. No ano novo são precisas ideias novas com urgência absoluta.
  • Gustavo Cardoso é investigador e coordenador do Mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE
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  • Medite-se nesta importante reflexão.

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