sexta-feira

Boas intenções - por António Vitorino -

Esta foi a semana em que os irlandeses explicaram que não eram gregos, que os portugueses explicaram que não eram irlandeses, que os espanhóis proclamaram que não eram portugueses e que os italianos tentaram que ninguém lhes perguntasse se não eram espanhóis!dn
A semana acabou com a Irlanda a recorrer ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira e com a chanceler alemã a declarar o euro em sério risco face à hipótese de novos pedidos do mesmo tipo!
Choca que ninguém tenha lembrado que somos todos europeus e que só por essa via é possível evitar o terrível "efeito dominó" que coloca agora as duas economias ibéricas na primeira linha da mira dos famigerados mercados financeiros!
Com efeito, os casos grego e irlandês reportam-se a dois países que representam cerca de quatro ou cinco por cento da economia da Zona Euro, levando à mobilização de cerca de 200 mil milhões de euros do dito Fundo. Mas, se o efeito de contágio atingir Portugal e, sobretudo, a Espanha, estaremos já a falar de países que, no seu conjunto, se aproximam dos 20 por cento da economia da Zona Euro, e só a Espanha poderia exigir a mobilização da totalidade das verbas europeias alocadas para esse efeito em Maio passado...
A resposta titubeante e descoordenada dos governos europeus, a pressão dos mercados e a contínua erosão da posição dos países mais expostos já deveria neste momento ser mais do que suficiente para que se percebesse que o quadro de reacção definido em Maio se mostra insuficiente e desadequado.
Nesta conjuntura, persistir na questão do mecanismo de reestruturação das dívidas soberanas, em caso de impossibilidade de satisfação por parte de um dos Estados-membros do euro, sem caracterizar os fundamentos desse mecanismo para além do enunciado de um vago princípio de co-responsabilização dos privados detentores dessa dívida, só agrava a situação. Mesmo afirmando que tal co-responsabilização só operaria plenamente no caso de novas dívidas contraídas após 2013, tal não impede que, por antecipação, os investidores se desfaçam da dívida soberana dos países considerados em risco... com os efeitos que estão à vista de todos!
Alguns vêem nesta deriva uma tentativa de provocar a "purificação" do euro, alijando a carga dos países mais vulneráveis. Ainda me recuso a aceitar que se possa estar de tal forma a brincar com o fogo.
Por um lado, porque nesta lógica não se sabe nunca onde se poria a fasquia que separaria as águas, e, por outro, porque uma tal divisão não se confinaria apenas à esfera económica ou monetária e acabaria mesmo por atingir os próprios fundamentos da integração europeia em geral.
Prefiro, por ora, considerar que esta reacção desajeitada fica sobretudo a dever-se à falta de visão do interesse geral e a uma manifestação reforçada de egoísmos nacionais.
Com o paradoxo, por exemplo, de o Reino Unido, pretextando estar fora da Zona Euro, não ter contribuído para o Fundo Europeu no momento da sua aplicação à Grécia mas, desta feita, tratando-se da Irlanda, ter acordado uma facilidade paralela de natureza meramente bilateral no valor de oito mil milhões. Dificilmente este gesto britânico ajudará a Senhora Merkel a explicar aos contribuintes alemães que a "boa intenção" britânica neste caso se fica a dever ao facto de os bancos do Reino Unido apresentarem uma exposição à dívida irlandesa na ordem dos 150 mil milhões de euros... só equiparável à exposição dos próprios bancos alemães!
Obs:
Digamos que a Europa só o foi verdadeiramente no pós-IIGM, para se reconstruir e fazer face aos eventuais irredentismos duma Alemanha derrotada nos dois conflitos totais. O RU sempre olhou para a Europa como uma oportunidade para lá ir buscar algo, nunca para consolidar uma organização de países, logo Sua Majestade sempre olhou para o Velho Continente de forma sobranceira; a França e a Alemanha estão dentro mas querem ser os directores do convento, mandando na sua estrutura e decidindo da afectação de verbas aos demais países quando as dificuldades irrompem no horizonte. E os pequenos Estados-membros, como Portugal, estão sempre ao sabor das vicissitudes, mas como Portugal é, de facto, um pequeno país mas uma grande potência diplomática poderia, se a diplomacia tivesse sido inteligente, apostado noutros mercados, da África lusófona por ex., para hoje sentir menos a pressão das dificuldades financeiras e da exiguidade dos mercados e das exportações nacionais.
A Europa hoje e sempre, com excepção de períodos intermitentes no pós-IIGM e na fase Delors, assemelha-se a um baile de máscaras em que alguém terá de vir dizer aos países qual a identidade que temos de estampar ao rosto para dizermos quem somos em cada momento problemático. E Sócrates atrasou-se na definição dessa necessidade, dessa imagem, e como os mercados são agiotas e insensíveis às ideologias e cores partidárias e estão-se a marimbar para a treta do Estado-social, este governo está a ser queimado em lume brando no panelão do João Ratão desta Europa que temos e se está a desconjuntar através da parte mais sensível: a União Monetária.
Se hoje nos perguntassem quem somos, ou que identidade temos seria um mal menor, malgré tout, afirmarmos que somos espanhóis da parte da Mãe e espanholados da parte do Pai.

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