segunda-feira

Só com a regionalização se resolve o problema do transporte público - Entrevista Mário Alves

Só com a regionalização se resolve o problema do transporte público

Entrevista Mário Alves

O transporte urbano deve passar para a tutela de autarquias regionais, supramunicipais, defende este especialista. De outro modo, continuaremos a ter uma oferta desarticulada e que dá prejuízos por causa de décadas de "navegação à vista".Por Inês Boaventura Engenheiro civil pelo Instituto Superior Técnico e mestre pelo Imperial College London, o consultor de transportes e gestão da mobilidade diz que "este é um problema político com soluções políticas". E acusa técnicos e eleitos de tentarem apagar o "fogo" do trânsito com gasolina.

É uma fatalidade termos empresas públicas de transporte em falência técnica como acontece em Lisboa e no Porto?

Não. Apesar de o transporte público em todas as cidades do mundo geralmente precisar de compensação financeira do Estado, esta situação não é habitual em países da Comunidade Europeia. Mas não pode haver ilusões, os transportes públicos têm de ser ajudados porque, aliás, trazem grandes benefícios sociais, muitos não directamente quantificáveis.

Então em que é que Portugal está a falhar?

São décadas de falta planeamento estratégico de longo prazo, de definição exacta do que se pretende com o Serviço Público de Transportes. Faltam autarquias regionais que definam estratégias coerentes de transporte e mobilidade a nível metropolitano - a autarquia metropolitana de Madrid tem feito um trabalho notável a este nível. Existe muita navegação à vista e nada articulada entre operadores, com competição entre modos de transporte que deviam trabalhar em complementaridade. Assim como muita falta de coragem política para restringir o uso do automóvel.

As autoridades metropolitanas de transportes podem contribuir para mudar essa realidade?

Estas autoridades terão muita dificuldade em fazer alterações de fundo no sistema, pois não têm um mandato político claro.

Então essas alterações estão nas mãos de quem?

Só serão conseguidas com autoridades de transportes sob tutela de autarquias regionais. É urgente para as áreas metropolitanas relançar o debate da regionalização. A mobilidade é um problema político com soluções políticas.

E seriam essas autarquias a financiar o sistema e a ter a tutela das empresas de transportes?

Sim, esse seria um modelo possível e até recomendável. Tem de haver articulação metropolitana entre os vários modos de transportes, assim como políticas de ordenamento do território coerentes e não-competitivas. Mas que não haja ilusões: neste momento o transporte individual é subsidiado, de forma directa e indirectamente, não pagando os custos sociais que provoca à sociedade - congestionamento, poluição atmosférica, acidentes rodoviários, emissões de gases, etc. Neste contexto estamos numa economia do tipo Disneylândia, onde uma parte substancial do transporte não está a pagar o seu verdadeiro custo.

Como é que se acaba com isso?

Não é um problema técnico, mas é obviamente um problema político enorme. Temos de começar a incluir a chamada Conta Pública da Mobilidade nos planos de deslocação dos municípios - isto é, informar as pessoas, decisores e políticos de quais são os verdadeiros custos de cada um dos modos de transportes. Decidir sem fazer contas sobre o futuro só pode levar à bancarrota.

Como é que se dificulta a "vida" do transporte individual nas cidades para tornar mais apetecíveis os transportes públicos e os modos suaves de mobilidade?

Existem muitas formas de o fazer. O estacionamento deve ser gerido com rigor e de forma a aceitar que todas as cidades têm limites de capacidade. O espaço público é um bem muito escasso e o automóvel é uma das máquinas mais ineficientes e mortíferas jamais inventadas. Um espaço público confortável, livre de obstáculos, com árvores e bancos para descansarmos e seguro, é condição essencial para que o sistema de mobilidade da cidade funcione com eficácia - os peões são a argamassa de um sistema de transportes públicos eficaz e economicamente saudável. Preparar a cidade para pessoas com mobilidade reduzida faz com que a cidade fique melhor e mais confortável para todos. Infelizmente não se conseguirá equilibrar um sistema com graves problemas agradando a todos.

As cidades portuguesas têm estado desatentas em relação à mobilidade pedonal?

Muitos equipamentos do Estado seguem modelos modernistas: grandes superfícies fora das áreas urbanas - temos campos universitários ou hospitais aos quais é praticamente impossível chegar a pé, e estão sempre rodeados de grandes áreas de estacionamento. Temos também grandes superfícies comerciais com milhares de lugares de estacionamento e rodeados de anéis de auto-estrada e vias rápidas. Para agravar a situação continua a persistir a ideia entre muitos técnicos e políticos que é possível resolver os problemas de congestionamento com mais capacidade da rede viária ou mais estacionamento. Isto são formas de apagar um fogo usando gasolina. Mas começam a existir bons exemplos.

Onde?

Almada, com um plano de mobilidade pioneiro em Portugal, tem agora um centro bem servido por um metro de superfície, com passeios largos e áreas de fruição pedonal. O Porto, com as intervenções no espaço público para a capital europeia da cultura, conseguiu alguns espaços de grande qualidade, assim como foi assimilando que a forma mais eficaz de reconquista do espaço público é a construção do metro à superfície. Portimão também tem tido uma intervenção muito consistente no que diz respeito a medidas de acalmia de tráfego e segurança para os peões.

Não tem sido devidamente acautelado o impacto dessas opções urbanísticas no domínio da mobilidade?

De forma alguma. É uma responsabilidade política que passou a ser considerada uma responsabilidade individual. Quem compra mais metros quadrados sem acesso a transportes públicos considera-se simplesmente que está a exercer a sua liberdade individual de consumidor. Os impactos e consequências deixaram de ser preocupação do Estado a não ser quando as consequências chegam aos anuários estatísticos. Da mesma forma, as autarquias e o Estado negoceiam a localização de grandes superfícies comerciais com milhares de lugares de estacionamento e cujo único acesso realista é o automóvel. Este tipo de opções não só exacerba a dependência das famílias ao consumo do automóvel como esvazia os centros urbanos de actividades económicas e emprego.

No futuro como serão feitas as deslocações nas cidades?

Muito dependerá do preço da energia e do horizonte temporal a que nos estamos a referir. É quase certo que nos próximos anos a escassez de combustíveis fosseis leve a que seja cada vez mais caro o uso de veículos tradicionais. Se este factor é mais complexo de ultrapassar no transporte interurbano de mercadorias, nas cidades o uso do transporte individual poderá ser mais facilmente substituído por modos de transporte mais económicos - nem que seja só em parte da viagem. Políticas de controlo de acesso e restrição ao estacionamento em zonas mais compactas levarão, principalmente em zonas históricas, ao uso do car-sharing (partilha de carros). Esta é a única forma possível de a maior parte dos habitantes de zonas históricas terem acesso a um automóvel de vez em quando. Mas para que este tipo de serviço floresça, terá de haver políticas corajosas de limpeza e requalificação do espaço público: as ruas das zonas históricas não poderão continuar a albergar o mesmo número de carros de hoje. Em nenhuma zona histórica europeia é possível garantir um lugar de estacionamento por fogo e não é por isso que deixam de ser zonas apetecíveis e disputadas por certos grupos sociológicos.

Obs: Eficientes e sustentáveis reflexões aqui nos deixa Mário Alves, um expert em Transportes que já tinha saudades de ler, confesso. E mais do que um problema técnico, a questão deverá inscrever-se no plano político através da Regionalização - essa "coisa" estranha muitas vezes falada mas pouco operacionalizada, em parte por falta de coragem dos políticos no activo, receando perderem poderes, privilégios, mordomias e estatuto, nem que, para o efeito, se continue a adiar o eficiente planeamento urbano - mormente em matéria de política de transportes - à custa duma política de mobilidade amadora, porque errática e casuística e fortemente anti-ambiental. Mário Alves é lúcido e tem razão, descurar os valores que sugere é adiar um velho problema na gestão das grandes cidades.

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