José Saramago desnudou a personalidade de Cavaco. Não era preciso morrer...
Como cidadão e cultor dos materiais culturais nunca achei Saramago esse valor excepcional que alguns nele reconhecem. Também acho que a falta de vigor na sua literatura ao denunciar os crimes das ditaduras de esquerda, como Cuba e Coreia do Norte, além das diatribes que o ex-director adjunto fez no DN no PREC e o desamor ao país que ele deixou contaminar por causa de um secretário de Estado e de Cavco, então PM, limitaram a dimensão universalista de Saramago. Aliás, foi, em boa parte, esse facto censório que, perversamente, catapultou Saramago para um patamar de mártir que depois gerou em seu torno uma onda nacional e internacional de compaixão em relação à sua figura e obra, reforçada depois com a partida do escritor para Lanzarote, nas Canárias. Aparte isso, o escritor, goste-se ou não dele, tinha uma imensa capacidade de trabalho, de inventiva e deixou obra e problematizou alguns dos problemas contemporâneos que afectam o homem, embora equacionasse sempre esses problemas imputando ao capitalismo e aos mercados a raiz do mal quando, consabidamente, os problemas de exploração do homem pelo homem vão muito além das questões materialistas dum marxismo demodé, mas que Saramago, por falta de alguma flexibilidade intelectual e ideológica derivada de insuficiência de cultura sociológica, acabou por revelar.
Mas isso não obstou a que homens como Mário Soares, com quem o escritor tivera desentendimentos, coisa frequente no escritor, não procurasse uma ponte tendente ao estabelecimento do diálogo. Essa correspondência é conhecida e é reveladora da personalidade e do carácter dos homens envolvidos. Ao invés, as relações do escritor com Cavaco sempre foram mais tensas e ressentidas, o que se prova pela ausência de Cavaco nas cerimónias fúnebres do escritor, revelando quem é verdadeiramente Cavaco. É certo que o escritor disse de Cavaco o que nunca poderia dizer de Soares, mas isso remete para a própria dimensão cultural das pessoas. Cavaco mistura T. Mann com T. Morus, revelou uma ignorância terrível sobre Camões e Os Lusíadas, Cavaco é a prova em vida do desprezo pelas coisas da cultura, um ser paroquial que ocupou o vértice do aparelho de Estado. Coitado, Cavaco não fazia por mal, mas esse é o registo genuíno da sua formação e do seu background cultural, pois estamos diante um homem com uma formação tecnocrática a quem não se pode pedir um comentário crítico sobre nada na esfera da cultura, seja da literatura, à música passando pelo cinema porque Cavaco é, de facto, uma pessoa sem esse background nem fez um esforço nesse sentido para suprir essa imensa lacuna ao longo dos anos. Soares já teve outra formação mais abrangente, o que lhe permite valorar sobre outros asssuntos sem incorrer nas gaffes monumentais em que Cavaco incorreu ao longo da história das últimas três décadas. Portanto, a ausência de Cavaco nesta última cerimónia é bem reveladora da sua natureza, alguém que despreza profundamente a cultura, os valores que a coadjuvam e facilitam a sua produção. Nesse sentido, é o povo em massa que está a suprir essa sub-representação do Chefe de Estado ao querer despedir-se do escritor na CML, onde o corpo de encontra. Facto que, naturalmente, também terá uma leitura política que Manuel Alegre saberá aproveitar muito bem. É triste, mas é assim, pois até com a morte das pessoas alguém irá capitalizar.
Soares soube sarar essas feridas com o escritor através do diálogo, e até elogiando dois ou três livros que Saramago tem e são verdadeiramente excepcionais, como O Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, e outros em função dos gostos dos leitores, ao invés, Cavaco - que só debita as banalidades da estatística que os seus assessores lhe facultam, apenas teve "arte e engenho" para ostentar o seu ressentimento e a sua congénita apatia cultural. É triste reconhecer esta comezinha e ultra-conhecida realidade, mas sempre pensei que com os anos Cavaco se revestisse de algum verniz cultural, ajudado por alguns assessores mais bem preparados no domínio da cultura, mas o actual PR tem uma personalidade rígida, sectária, rancorosa e profundamente anti-cultura(l), tudo razões que explicam esta sua lamentável predisposição para desprezar os materiais culturais do nosso tempo que Saramago soube interpretar através da sua literatura. A comparação entre os homens será inevitável: Saramago, com erros, injustiças ao seu próprio país e algumas limitações, deixará uma obra ao país, que certamente terá seguidores e cultores que a saberão reinterpretar e revalidar; Cavaco deixará ao país algumas estradas, pontes e escolas, mas só possíveis de realizar mediante os fundos comunitários proporcionados pela entrada de Portugal na então CEE - cuja adesão foi assinada pelo punho de Soares, e até nesta coincidência Cavaco revela a sua verdadeira e congénita pequenez de que nunca se conseguiu apartar. Eis a sua verdadeira condição tristemente posta a nú com a morte do único nóbel da literatura nacional. Mas não era preciso Saramago morrer para todos chegarmos a esta triste conclusão, mas já que aqui chegámos será útil que meditemos todos nela nas próximas eleições presidenciais já em 2011... Pensemos, por segundos, no processo de transição para a democracia na África do Sul e na grandeza cívica e humana de Nelson Mandela, cerca de trinta anos enclausurado, e comparêmo-lo ao cavaquinho... É de fugir!!! Inevitavelmente, a cultura está ligada à política, e a política também é um reflexo da cultura do tempo em que vivemos. Quem não percebe isto deve continuar a comer o cozido das Furnas em regime de vacances nos Açores em mais um gesto pacóvio neste triste Portugal tão mal representado no Palácio Rosa.
Etiquetas: A morte de José Saramago, Cavaco Silva, pequenez dos homens
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