quarta-feira

A verdade do Papa Bento XVI

Cerca de cem mil pessoas estiveram ontem no Terreiro do Paço, em Lisboa, para a celebração da missa do Papa Bento XVI, no primeiro dia da sua visita a Portugal, segundo números da polícia. Fotografia: Daniel Rocha
É sabido que o Papa Bento XVI chegou à fé por via da razão, consequentemente, partiu da razão dos factos para encontrar o sentido de missão junto da igreja e promover no mundo a sua mensagem ecuménica recordando-se da própria experiência de Jesus na Terra. Neste sentido, não é difícil perceber a sua mensagem de busca da verdade, de caridade, de fraternidade entre outros valores absolutos que a igreja sempre defendeu no plano dos valores e dos seus princípios doutrinários. Estranho seria que não os defendesse.
O mais desafiante será, porventura, concatenar esses valores absolutos, pequenos guias da condição e da conduta humana, com o funcionamento da economia neoliberal que apenas reage aos comandos e caprichos hiper-materialistas dos mercados, aos quadros jurídicos cada vez mais apertados que regem as sociedades humanas, especialmente após o Consenso de Washington que abriu portas à globalização competitiva que tem sido o decisor oculto que tudo (des)regula, e ao interpretar tudo isso com as vertentes económica, social e cultural no interior das sociedades.
Ou seja, Bento XVI já identificou os problemas que o mundo tem pela frente, mas o quadro das respostas que sinaliza apenas têm uma base teórica, doutrinal, por vezes neo-dogmática, que serve mais à estrutura e funcionamento da igreja e ao Estado do Vaticano e pouco serve às massas humanas, aprisionadas nas grilhetas do seu quotidiano. Mas também não se pode reclamar da igreja as respostas, as atitudes e os dispositivos que devem partir das instituições políticas porque, apesar de tudo, são os Estados que arrecadam os nossos impostos, são os governos que fazem as leis (mediante parlamentos legítimos) e as aplicam, são, ou deveriam ser as instituições políticas que comandam os mercados (e não o inverso!!, recorde-se que o mercado foi uma invenção do Estado).
Tudo, portanto, coisas que escapam a uma mera mensagem papal de caridade, amor e verdade. Valores absolutos, mas que hoje estão nos antípodas dos termos que comandam as sociedades, o que cava ainda mais o fosso entre a mensagem da igreja e a forma como opera a economia. Apesar do esforço do Papa em reclamar que cada cidadão se empenhe mais nos assuntos públicos, talvez não fosse marginal Bento XVI levar a sua mensagem mais longe e, doravante, começar por defender que a verdade tem - e deve - ser procurada nas bolsas de valores, no funcionamento global das economias, nas agências de rating, na forma como é realizado o recrutamento da classe dirigente.
Talvez os problemas estejam centrados nesses nó-górdios, onde, precisamente, a fé, a caridade e a verdade são outras: money, power and influence, tudo vectores que a mega-instituição igreja ao longo dos séculos muito bem cultivou, começando, desde logo, por cobrar um mega-imposto ao então condado Portucalense pela sua independência, em 1143, embora a Santa Sé só o aceitasse mais tarde, mediante reconhecimento da sua irreversibilidade em 1179, através da Bula Manifestis Probatum, do Papa Alexandre III.
Onde é que se pretende chegar, afinal?! Ao simples facto de que, como ontem referiu Bento XVI, ninguém pode destruir a igreja (!?), além dos seus pecados residirem no seu seio. Este reconhecimento não reflecte apenas um deslize do Papa, vai, presumo, mais longe e esbarra na própria história da igreja, sobretudo quando nela, históricamente, facilmente reconhecemos o peso que o dinheiro, o poder e a influência tiveram na sua estruturação. Seja no seu relacionamento internacional, ou seja, entre Estados soberanos, seja ainda no quadro do seu relacionamento inter-religioso que, apesar de tudo, foi harmonizado por este Papa, mas após uma certa contenda com o islão que, consabidamente, é abusivamente interpretado de forma a conduzir aos fundamentalismos que desembocam no terrorismo globalitário que conhecemos.
Em suma: tudo começou e hoje se desenvolve em torno do dinheiro, e assim continuará, ainda que com potentes sistemas intelectuais de justificação a adornar toda a doutrina da maior e mais velha instituição do mundo. Ainda que isto desgoste alguns falsos beatos que escasso conhecimento têm da História Diplomática e da igreja e só sabem o que lêem através das encíclicas papais e da banha de cobra que consomem quando aos domingos vão lavar a má língua nas missas da moda.
Infelizmente, Bento XVI tem razão: os pecados estão dentro da igreja, e quando forem efectivamente combatidos talvez a igreja tenha mais autoridade e legitimidade para criticar os Estados, os mercados e a forma desregulada como hoje a economia global formata as nossas vidas.
Isto pode ser assim, mas também pode demorar mais uns bons séculos, como tudo o que se passa no tempo cronológico da instituição mais antiga e que hoje surpreenderia Deus e Seu filho caso fosse possível comunicar-lhes o resultado dos tempos nesta vida terrena, repleta de vícios e de pecados, ainda que encerrados em largas promessas de esperança no futuro que está como o tempo: incerto.

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