quarta-feira

O peso degradante das multidões na nossa vida pública. Razões da conflitualidade política. O fardo bloqueante de Belém.

Numa reflexão abaixo acerca das causas que conduzem à conflitualidade política em Portugal defendemos que tal se deve à falta de produção de alternativas políticas consequentes que, no plano das ideias e dos projectos, possam ser mais competitivas do que a actual governação socialista liderada por Sócrates. Isso, de per se, aliado com a personalidade e a combatividade do actual PM - que ganha todos os debates na AR - irrita solenemente a oposição - que há muito tem sede de poder e já não sabe viver em regime de oposição, fora das posições de chefia e comando do aparelho de Estado.
Isto ajuda a explicar o quadro de conflitualidade política em Portugal, ou o efeito de "espanholização", como designa António Vitorino a fim de expressar o mesmo fenómeno sociopolítico. Mas isto só não basta para caracterizar o fenómeno, daí a nenessidade de ir além na explicação que é eminentemente de cariz sociológico e cujo centro de gravidade dessa conflitualidade se transferiu para o hemiciclo da AR.
Daí que cada debate sobre o Estado da nação, e recordamos aqui que Sócrates vai ao Parlamento todas as semanas, ao invés de Cavaco que raramente lá ia quando era PM (o que revela o cariz democrático de um e outro), se transforme numa autentica batalha campal: muita agressividade verbal e poucas propostas para enriquecer o bem comum, pois é disso que os portugueses precisam.
Assim sendo, e reunidos alguns homens, basta que um factor-comum acorde o que neles há de comum, há muito recalcado: o poder aliado ao profundo desejo de apear Sócrates desse mesmo poder. No caso de Manuela Ferreira Leite, uma espécie de chefe de divisão do economato deste PSD - como se o maior partido da oposição fosse uma "Moviflor" (passe a Pub. negativa) em campanha permanente para saldar ou rifar o seu líder, pode até só ter essa motivação, mas basta que haja um condutor hábil para que esse grito de revolta e virulência se instale na vida pública e acabe por dominar e bloquear o processo político, congelar o processo de produção legislativa e, desse modo, atrasar o país num momento em que Portugal vegeta entre a crise e a recessão.
Para agravar esta situação de pré-ruptura constitucional o país tem um PR, Cavaco, verdadeiramente tático que faz da Presidência da República um posto de permanente auto-promoção pessoal para condicionar toda a vida pública, secundarizando, com essa visão mesquinha e paroquial (e pérfida, como o demonstrou o caso das escutas ao governo que urdiu para queimar políticamente o PM), o verdadeiro interesse nacional do país. O facto de Cavaco manter um silêncio ensurdecedor - como diria M. Torga - relativamente ao actual estado da oposição e da justiça miserável que temos em Portugal, desde logo a PGR, é um sinal degradante revelador da visão que cavaco tem e faz do Portugal contemporâneo.
Dito de outro modo: o fardo bloqueante de Belém encontrou um eco tão silencioso quanto pernicioso na escravidão dos números a que o PR disciplinadamente se obriga, diáriamente, hora-a-hora, minuto-a-minuto perscrutando o barómetro que mede a sua cotação política e a sua notoriedade a fim de voltar a ganhar os pontinhos sabujos que perdera por ocasião da indigna cilada que tentou executar sobre o PM em funções e que acabou por sair gorada descobrindo-se a careca política a Cavaco silva, seu mentor, e cujo testa-de-ferro foi, como se sabe, Fernando lima, o assessor que na história política nacional foi mais rápidamente demitido e admitido sem que, com isso, cessasse funções na PR e servindo o mesmo amo. Um caso político original, portanto. Merecedor, seguramente, de estudo atento por parte da psiquiatria política, um ramo em ascensão em Portugal.
Com efeito, o Cavaco da década de 80 do séc. XX nada tem a ver com o Cavaco (ou o "sr. Silva", como lhe chama Al berto João Jardim da Madeira) do III milénio, hoje Cavaco faz política perguntando-se como pode voltar a recuperar os votinhos dos eleitores que perdeu por causa da cilada das escutas a S. Bento, recuperando também, no outro tabuleiro das sondagens que consubstancia a democracia de opinião, a sua cota de notoriedade nos estudos de opinião que embrutecem os portugueses e danificam a democracia representativa - que hoje anda pelas ruas da amargura, como se viu a semana passada por ocasião do debate parlamentar.
Hoje Cavaco nada mais faz do que se perguntar o que fazer para aumentar as suas rendas políticas, alinhar o seu horizonte político para se perfilar para as próximas eleições presidenciais (buscando o maior apoio partidário possível). Tudo fazendo para potenciar o seu impacto sobre o seu barómetro político e fazer esquecer a indignidade pessoal e político-institucional vertida na cilada das escutas a S. Bento e nos vetos (gratuitos) de Belém a certos diplomas do governo, procurando colar na imagem de Sócrates a de um espião da Guerra Fria que veio do leste - e queimá-lo políticamente diante dos portugueses.
Eis o Cavaco Silva que os portugueses têm hoje em Belém, sendo certo que neste jogo a política já não liberta espaço para as ideias, os projectos, a grande estratégia e a alta política. Hoje, ao invés, é só o umbigo de Cavaco silva que se mostra aos tugas, mitigado com as suas mesquinhas ambições, fantasmas e sonhos. E é também esta relação do poder que o Estado nutre com a sociedade que agrava as condições de crise do funcionamento do sistema político em Portugal, agravando também as condições de vida concreta dos portugueses.
De modo que cada debate na AR converte aquele hemiciclo numa espécie de "planeta dos macacos" - em que a ausência de lei e ordem transforma aquela fauna numa luta desordenada pela conquista da banana, das fêmeas e das melhores posições territoriais - dando a imagem de que a política passou a ser uma bio-política do mundo animal em estado puro. Os deputados já não são aquele corpo ordenado de representantes responsáveis dos eleitores, mas uma massa excitada - mormente os da oposição por falta de poder - influenciada pelos seguintes factores: paixão exacerbada pelo poder, esperança e ambição de que o vão capturar em breve, medo de não o conseguir, orgulho ferido pelo facto de Sócrates ganhar todos os debates - como que humilhando em bloco toda a oposição, apesar do Freeport, das escutas/Face Oculta, etc; ódios de famílias, de partidos e de facções, desejo de agressividade pura e gratuita, desejo de vingança e de represália e um tremendo espírito de destruição - em particular provenientes do BE e do PCP, ante a inércia mentecapta da actual liderança do PSD e do taticismo do cds de Paulinho das feiras.
É, portanto, sob o domínio deste factores que os deputados se erigem em massas, em multidões no seu estado de desvario causado pela perturbação resultante da ânsia pela busca do poder e de apear Sócrates nessa luta. E é este estado de excitação geral e permanente, diante da profunda crise económica e social que graça no país, que enterra ainda mais este nosso querido Portugal, como diria o Eça, em vez de o salvar destas multidões em fúria que agora transformaram o hemiciclo da AR na arena do Campo Pequeno.