quarta-feira

José Régio: um homem plural e actual. O triplo movimento psicológico, cultural e sociológico

Minha consciência cada vez maior da

terrível e religiosa missão que todo

o homem de génio recebe de Deus

com o seu génio.

Fernando Pessoa

Ventura Porfírio, Poeta de Deus e do Diabo, 1958Óleo sobre tela, 138,5 x 108 cmCâmara Municipal de Portalegre, Casa-Museu José Régio

José Régio

«Pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira. Nasceu em Vila do Conde, em 1901. Licenciou-se em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos, no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista Presença e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, é como poeta que primeiramente se impôs.

Com o livro de estreia - poemas de Deus e do Diabo (1925) - apresentou José Régio quase todoos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos dentre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano; o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante si mesmo. Em Biografia (1929), os vários aspectos desses temas surgem cristalizados em sonetos (alguns deles modelares) e ordenados num esforço de poemas cíclicos em suspenso. Mas, com as Encruzadilhas de Deus (1936) José Régio atinge os momentos mais altos da sua poesia torrencial e reflexiva, ao mesmo tempo lírica e dramática. Depois, intenta dissociar esses dois pólos da sua inspiração, canalizando doravante o ímpeto dramático para uma específica criação teatral e reservando então para a obra poética, em verso, os recursos de um Herismo pouco evoluído, ora moralístico, sentencioso, ora sentimentalmente estremecido, mais preso à lição dos grandes líricos do século passado do que vinculado a qualquer experiência da modernidade. E, se ainda é cedo para avaliarmos o que significou, para a evolução do teatro português, peças como Jacob e o Anjo (1940), Benilde ou a virgem Mãe (1947), El Rei Sebastião (1949); A Salvação do Mundo (1953) ou As Três em Acto (1957) - é, todavia, desde já possível assegurar que a poesia de José Régio, reduzida ao lirismo, muito perdeu de força primitiva, em livros como o Fado (1941), Mas Deus é Grande (1945) e A Chaga de Lodo (1954). Estes três livros não deixaram no entanto, de evidenciar um progressivo virtuosismo métrico e particularmente o primeiro é o último - notáveis qualidades de coragem na sátira social.».*

* in Dicionário de Literatura, campanha Editores do Minho - Barcelos, 2º volume, 1971.

Notas MACRO:

Com efeito, a problemática literária, cultural e metafísica em José Régio é tão actual ao tempo em que viveu e escreveu como na contemporaneidade, já na dobra de outro século e d' outro milénio. Contudo, nessa trajectória as sociedades evoluíram, o mundo redefiniu-se, as tecnologias sofisticaram-se, o quadro de mentalidades também já não é o mesmo.

Toda a natureza da técnica e da tecnologia (humana) recriou novos mundos, novos desafios e novas crises, a política passou a viver de "pseudo-factos" (os factóides) dinamizados em múltiplas narrativas de imagens sobre imagens; a economia passou a ser uma ciência ainda mais contigente, mas, lá está (!!!), a problemática na obra de Régio continua actual e suscita interessante reflexão sociológica, indo, pois, para além das balizas da literatura que produziu:

  • 1) A relação do Homem com Deus permanece actual, ou até acentuando-se dada a crise da fé, das ideologias e da própria crise económica e cultural que a civilização nos impõe;
  • 2) A relação do indivíduo com a sociedade atomizou-se por força da implosão da instituição da família, da emergência de novas relações de género (casamentos gay, por exe.,);
  • 3) E apesar d' hoje termos todas as tecnologias de massa que nos conferem faculdades que, sendo crentes, só imputamos a Deus (como a ubiquidade, a omnipotência, a omnipresença e a omnisciência) - o conceito de "solidão" em Régio mantém actualidade, e até nos remete para aquela outra ideia, talvez mais elaborada no plano sociológico, de multidão solitária de David Riesman - que nos diz que a reforma das estruturas sociais pode (ou não) reconciliar os indivíduos consigo próprios. Por isso, podemos andar integrados em multidões ou em tribos e sentirmo-nos sózinhos, desarticulados com o "outro", incompatibilizados com a sociedade e até em conflito com o Estado - que também acaba por reproduzir os mecanismos sociais (de violência latente) que agravam ainda mais essa atomização do indivíduo na Idade Global em que vivemos. Daí a extrema actualidade da problemática da obra de José Régio, embora matizada com outras nuances e integrando outras variáveis não previstas na década de 20 do séc. XX findo.

Ora, sendo eu um fraco conhecedor da obra do poeta em questão, pergunto-me onde reside hoje o valor destes homens de cultura!? A resposta, para mim, é simples: a importância destes homens mede-se pela sua capacidade de resistir à ditadura e à malha do tempo, às modas, às correntes culturais que passam - e desactualizam (ou não) a obra d'uns, e valorizam a obra d' outros autores que entre nós estão um pouco esquecidos.

Sobretudo num tempo de intensa comunicação, pautado pelo avanço tecnológico, alguns dos questionamentos de José Régio também servirão para nos perguntarmos se, de facto, o dito progresso tecnológico, aliado às novas formas de comunicação, contribuem realmente para a aproximação das pessoas (sociedades, povos e culturas, mormente num mundo multicultural e global em que vivemos) e, assim, dissolver alguns dos seus questionamentos e/ou equações metafísicas?

E se sim, em que termos, já que uma das derivas reflexivas da obra de Régio integra a problemática da sinceridade e do logro perante os outros, perante a sociedade.

Vejo também aqui uma especial capacidade antecipatória e prospectiva para que o poeta, o dramaturgo, o ensaísta e o romancista conseguisse prever o esprit du temp, ou seja, antecipar a lógica interna à dinâmica daquilo que veio depois a pautar as relações sociais - nas suas dimensões micro e macrosocietárias - que hoje, consabidamente, se alimentam de elevadas doses de cinismo e de hipocrisia - valores esses contraditórios com essa busca incessante em Régio quando visava o valor da "sinceridade".

No fundo, é assim, como leigo da sua obra, que vejo Régio: um certo esforço de racionalização da cultura e da literatura como formas de compatibilizar e harmonizar o homem com Deus, com a sociedade e consigo mesmo.

É, portanto, neste triplo movimento cultural e psico-sociológico que interpreto a vida e obra de Régio nos nossos dias. Alguém que compreendeu os desejos e as pulsões humanas (Freud), mas também compreendeu que a civilização é sobretudo uma forma de censura e de repressão, tendo em linha de conta a sua problemática, como acima sublinhei a verde.

Por último, importa referir que Régio nos falou muito da "angústia e da consciência da frustração", sentimentos também apreendidos em Freud ao considerar a civilização, mas a morte desses males ("angústia, sofrimento, frustração") só poderá, dentro e fora da obra do romancista José Régio, dissolver-se ou atenuar-se mediante a "tal" reconciliação do homem consigo mesmo (e com Deus), e isso só se consegue pela reforma das estruturas sociais e económicas do nosso tempo, compatibilizando, nessa trajectória, Freud com Marx.

Creio que Régio, se hoje estivesse entre nós, se bateria por fazer da literatutra e das artes em geral - uma arma social - no melhor sentido, i.é, visando o bem comum das comunidades. Aliás, muitas das suas inquietações poderiam até ser hoje retomadas por muitos de nós: indivíduos, movimentos sociais, associações cívicas, ONGs, igreja, enfim, sociedade civil no seu tecido conjuntivo.

Desse modo, será mais fácil operar a mudança de valores que hoje se impõe em vista à construção duma sociedade mais perfeita. Até porque os homens de cultura não são alheios aos progressos do seu tempo, e devem, consoante as conjunturas, coadjuvar o Poder quando a trajectória social segue no bom sentido, ou criticá-lo quando os indicadores socioeconómicos são uma lástima entre nós (e na Europa e no mundo).

Por isso, veria com alguma facilidade (caso o poeta fosse vivo) - Régio estar hoje profundamente ligado ao teatro de intervenção, fazendo e refazendo as suas peças, talvez com menos drama e mais tragédia, possibilitando a inúmeras companhias de teatro do nosso país representar muitos - À espera de Godot - do nosso tempo.

Embora o núcleo de preocupação e reflexividade em Régio fosse saber como harmonizar antinomias difíceis, que são eternas e, por isso, não se resolvem por decreto ou com uma simples mudança geracional ou de evolução do quadro de mentalidades. Uma tarefa difícil no nosso tempo.

Até que essa harmonização de sentimentos, desejos e interesses - profundamente contraditórios - se acomode no espírito humano e na sociedade, resta-nos repensar a obra de José Régio à luz da contemporaneidade, como alguns intelectuais e escolas fazem entre nós, e bem, e, ao mesmo tempo, reequacionar as lições culturais e sociológicas que dele podemos extrair para compatibilizar todas aquelas antinomias que Régio nos deixou.

E não foram em vão... Se não formos por aí!!!

A grande questão está, no plano social, cultural e político, em determinarmos, com precisão, o que significa esse "aí".

PS: Dedicamos estas simples notas a todos os amantes e cultores da obra de José Régio, que viveu e trabalhou em Portalegre, boa terra.

João Villaret :: Cântico Negro :: José Régio

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