quinta-feira

A humanidade dos factos - por Baptista-Bastos -

Num depoimento, editado como entrevista e publicado no diário i, António Barreto retrata o nosso tempo português com a perspicácia que se lhe reconhece. Adivinha-se a dor velada e o pudor, quando diz que Portugal está à beira de ser uma irrelevância e pode condenar-se a desaparecer. Não é uma jeremíada, o texto, é uma grave advertência à nossa preguiça mental, moral e cívica. Por outras palavras, Barreto fala na desconstrução do discurso político, devido à ascensão ao poder de uma súcia de medíocres, e recusa participar no embuste, tornado comum, de uma leitura exclusivamente económica do mundo. Como escrevia, no "Retrato da Semana", Público, não acredita na inocência da técnica, porque é lá que reside a banalidade do mal [Hannah Arendt].
Ao sermos informados dos vencimentos obscenos, obtidos por "gestores", entendemos o mal-estar de Barreto, quando critica a ausência de "elites" em Portugal. Ele pertence a outra geração. E acredito ser-lhe difícil conviver com as circunstâncias da perversidade, impostas pela modificação do paradigma. Anteriormente, numa bela conversa com Ana Lourenço, SIC-Notícias, disse, implicitamente, que apreciava viver no silêncio dos factos, porque estes possuíam uma humanidade terrivelmente normal.
O sistema está não só errado como é criminoso. A organização social, baseada no lucro, acabou com o discernimento das consciências e liquidou as leis morais. O processo Face Oculta é uma consequência, não uma causa. E, queiramos ou não, estamos todos envolvidos nesse laboratório de cumplicidades, porque fazemos parte da construção mental que consentiu no empreendimento. As perfídias totalitárias da "modernidade" criaram uma poderosa ideologia de legitimação das mais cruentas injustiças e das mais atrozes desigualdades. Dão-se milhões de milhões a bancos, fazendo-nos crer que se trata de decisões sociais, e recusam-se míseros aumentos de cêntimos a quem pouco mais tem de 200 euros mensais para viver. No fundo, Armando Vara faz parte do sistema, e parece espantado pelo que lhe está a acontecer. Esquece-se, no entanto, de que o imbróglio em que caiu foi perpetrado pela mão invisível na qual tinha absoluta confiança. A corrupção, o tráfico de influências, a troca de favores pertencem à estrutura social.
A amargura de António Barreto faz parte da amargura de alguns de nós. Não de muitos: de alguns. Para excessiva gente, a acomodação tem custos mínimos. E a violência simbólica ou física das sociedades actuais obriga a que sejamos dominados por uma casta também ela dominada pelos insanos mecanismos do mercado. Ouve-se, desde o processo Casa Pia, que "isto não vai dar em nada", fórmula que se tornou célebre como selo da nossa côncava resignação, ante uma justiça sem grandeza nem conteúdo. Temos de acudir a nós próprios.
Obs: Muitos de nós compreende a insatisfação de uns auferirem salários tão elevados relativamente a outros que ganham uma miséria ao fim do mês. É óbvio que isto está na base da utilização do talento de alguns dos nossos intelectuais para zurzir alguns dos nossos banqueiros caídos em desgraça. Ainda que isso não seja assumido, porque estragaria a linha de argumentação. É o ressentimento intelectual na sua máxima força e dissimulação. É o ressentimento vertido na mais pura e fina água intelectual, até com recurso filosófico a Hannah Arendt. Bastos, até poderia ter recorrido a Vilfredo Pareto, embora o deva desconhecer, seguramente. Mas talvez aqui o que importe precisar, e por isso é que o artigo de Baptista-Bastos erra o alvo - apesar de envolver a problemática (tráfico de influências e corrupção), é que o nosso sistema de justiça é incompetente e laxista, e isso abre caminho às maiores injustiças manchando, por vezes, o bom nome das pessoas que até podem estar inocentes nos ditos processos. Desconheço se Vara é ou não inocente, para mim é até um político mediano, mas o que me preocupa não é tanto saber se Vara ganha num mês mais do que eu, o Barreto e o Baptista-astos num semestre, mas determinar se a nossa justiça vai continuar a ser a medíocridade que sempe foi em Portugal. E ao não assinalar isso, causa de grandes males, o articulista incorre no mesmo tipo de ressentimento intelectual e cultural que o sociólogo que cita, Barreto, e apesar de ambos problematizarem bem os fenómenos que bloqueiam a democracia em Portugal - tornam-se incapazes de ver o nó górdio que hoje está sobre a mesa: a (in)justiça que nos corrompe e destroi. Talvez tema para mais um livrinho de Barreto e mais uma reflexão no dn do escritor Bastos. O resto é conversa de café, ainda que com recurso fino a Arendt...