quinta-feira

Regresso a Aron - que ainda não foi substituído nem esquecido

Regresso a um mestre, porventura um dos maiores do séc. XX: Raymond Aron. Um grande teórico, um excelente professor, um filósofo cujas preocupações, equações e ideias foram seminais no decurso do séc. findo e cujas derivas transbordaram para o séc. seguinte.
A sua higiéne mental comprometeu-nos a todos, a potência das suas reflexões políticas não deixava ninguém indiferente, a sua forma de escrever também não, de modo que o seu legado foi poderoso, seminal. Em Portugal um ex-ministro de Salazar que ainda passeia a sua surdez pelos estúdios de tv ainda o tentou plagiar, com ajustamentos e copianços anglo-saxónicos ridículos mas sem nunca o igualar.
O seu legado foi de tal modo importante que somos ainda tentados a interpretar o mundo com a sua grelha de análise e o seu método de apreensão dos acontecimentos sociais e políticos. A sua teoria, a sua sociologia, a sua praxeologia e a sua história foram fundamentais para nos ajudar a compreender a marcha do mundo que findou com a Guerra Fria, a que se seguiu outro muito diferente, mas não foi essa diferença que bastou para desactualizar o pensamento de Aron ou desclassificar a sua imensa e seminal obra, de que aqui destaco o Paz e Guerra entre as nações.
A sua ligação teórica, histórica e intelectual à potente obra de Max Weber permitiram a Aron fazer exercícios intelectuais e diagnósticos que mais ninguém conseguiu fazer em todo o séc. XX, especialmente em matéria de Paz e Guerra entre as nações, desactualizando Sartre, perspectiva que complementou relativamente à personalidade dos homens políticos do seu tempo, à natureza (e fraqueza) das democracias e dos regimes totalitários, à política internacional, e, em regra, às escolhas e aos compromissos que é necessário fazer quando se está a trabalhar a política pura e aplicada, esse misto de técnica e de arte.
Seja para gerir pequenos assuntos de segurança e defesa inscritos na ordem doméstica, seja para equacionar novos perigos que hoje os fundamentalismos ligados aos terrorismos globalitários e a proliferação nuclear colocam aos Estados, às sociedades, aos povos e ao sistema no seu tecido conjuntivo. Esta intensificação dos problemas na área da Segurança & Defesa também acaba por nos recordar a velha ideia que já há uma década se ensina na academia segundo a qual aquela fronteira entre assuntos internos e assuntos internacionais se esbateu com a globalização social, tecnológica, económica, financeira e, acima de tudo, esse novo formato de globalização competitiva - que veio trazer uma nova intensidade, escala e dimensão à natureza dos problemas com que hoje os decisores na área se têm de defrontar.
Tendo sempre presente, naturalmente, que a Política de Defesa Nacional é alimentada mediante estudos parcelares e de conjunto que retratem a realidade estratégica envolvente, identificando as ameaças e os desafios, à luz dos grandes desígnios nacionais contidos na CRP e nas leis-paraconstitucionais, nunca esquecendo os meios que é possível disponibilizar para realizar os tais objectivos do Estado. Ou seja, só se pode fixar uma ideia de como se deve actuar para manter a segurança de Portugal durante um certo período de tempo e num dado contexto, findo os quais as correlações de força mudam, as alianças alteram-se, as variáveis desactualizam-se, como as relações com as próprias pessoas. Daí a necessidade de se andar sempre com o Conceito Estratégico de Segurança Nacional na "ponta da língua", porque será ele, de par com outros instrumentos e conceitos estratégicos da área, que permitirá ir afinando a "máquina" da Defesa e Segurança Nacional nesta 1ª metade do séc. XXI - que conheceu o terrorismo globalitário no 11 de Setembro e ainda não o conseguiu expurgar da face da terra.
Numa palavra, Aron continua indispensável para compreender o mundo, a sua matriz ajuda-nos a equacionar as causas dos problemas (do nosso declínio), e também nos ajuda a encontrar soluções para esses mesmos problemas. A filosofia e a história - se estiverem presentes nessas equações de poder - acabam sempre por ser ciências resolutoras dos nós górdios contemporâneos, e isso remete-nos, forçosamente, para a recuperação da conduta específica do diplomata e do soldado. Dois homens, dois símbolos que agem representando as suas comunidades, o embaixador representando o país em nome do qual fala; o soldado no campo de batalha e, se necessário for, dando a vida por esse ideal de comunidade que é o seu país.
E apesar do mundo ter mudado muito nos últimos 20 anos, nos seus equilíbrios de forças, tecnologias e modos de aplicação do Poder, da Influência e da Autoridade, os três principais conceitos da CP, aqueles dois personagens, o embaixador e o soldado, vivem simbolizando as relações internacionais do nosso tempo - que, não raro, ainda põe de lado a diplomacia para resolver os seus diferendos através do recurso à guerra. A história é esse cemitério pejado de homens e mulheres que ilustram esse facto.
Talvez por isso também valha aqui a pena recuperar outra fórmula; si vis pacem, para bellum, se queres a paz prepara-te para a guerra. Eis a melhor forma de construirmos a paz, a democracia e o desenvolvimento, até porque o ódio e as guerras, como diria o Papa João Paulo II - começam sempre no coração dos homens.
A Segurança e a Defesa do país, nesta perspectiva integrada das Relações Internacionais, remete para a salvaguarda do máximo de Liberdade e de acção conforme com a realidade que sistemáticamente nos condiciona, directa ou indirectamente. Assim sendo, tudo tem relação com tudo, ou seja, as missões concretas do nosso aparelho de forças militar intra e extra-muros afecta os chamados subsistemas sociais cujos objectivos devem ser cumpridos por cada um desses vectores estratégicos nacionais - e que intersectam a política externa, as finanças, o ambiente, a cultura, a comunicação, a saúde, a educação, a política interna, a rede de transportes e o mais que afecta a segurança e a coesão económica e social de um país.
Com estas notas singelas deixamos aqui esta breve evocação ao genial Raymond Aron, meu mestre, mestre de muitos e mestre dos tempos.