sexta-feira

PREVENIR OU REMEDIAR

O sublinhado é nosso.
São vários os estudos levados a cabo em diversas universidades europeias sobre a crescente onda de violência, em especial nas camadas mais jovens da população. Por via de regra esses estudos identificam estes casos pontuais de violência extrema com um ambiente geral de agressividade e com a perda de valores partilhados de solidariedade e de convívio, em especial no ambiente escolar e no meio familiar.
Como é evidente, em cada caso registado identificam-se factores específicos de perturbação pessoal, embora sempre depois das tragédias ocorrerem. Com efeito, um dos traços mais preocupantes destas situações tem a ver com a tendência para que a indução pessoal à violência extrema seja um processo solitário. Os seus protagonistas muitas vezes nem são considerados propensos à violência em função dos seus comportamentos anteriores, antes sendo descritos como pessoas reservadas, isoladas, sem amigos, sendo esse seu distanciamento interpretado como sinal de "normalidade" ou até "pacatez".
Mas, na realidade, essas aparências apenas escondem um progressivo processo de alienação humana que acaba por explodir numa manifestação agressiva e num mar de sangue.
A circunstância de os alvos serem normalmente escolhidos pelos assassinos em meio escolar constitui um factor acrescido de preocupação quer sobre o impacto pretendido pelos seus autores quer sobre a capacidade de as escolas procederem à detecção precoce de potenciais agressores.
Sabe-se também que o "efeito de imitação" representa um incentivo à prática de actos tresloucados deste jaez, do mesmo modo que muitas das actividades ditas de entretenimento (designadamente uma vasta gama de videojogos) são tributárias de uma cultura de banalização da violência e de depreciação da vida humana que se vai progressivamente instalando.
Está bem de ver que cada caso é um caso e para cada agressor é possível determinar motivações próprias, as circunstâncias que propiciaram tal perturbação e até, em alguns deles, uma doentia obsessão exibicionista levada ao extremo do seu próprio suicídio (como sucedeu desta feita de novo).
Um traço comum a todos, contudo, diz respeito à facilidade com que os agressores acedem à posse de armas de fogo com as quais executam este tipo de massacres, mesmo quando se trata de menores, como foi o caso mais recente.
Nenhuma sociedade pode impedir totalmente esse acesso e é bem sabido que, tomando em consideração apenas os três países que citamos, há diferenças significativas dos respectivos regimes legais em matéria de compra, venda e utilização de armas de fogo, variando entre casos de assinalável permissividade (como em alguns estados federados nos EUA) até regimes bem mais estritos (Finlândia).
E se não se pode pedir à lei que resolva todo o problema, pelo menos é legítimo que a sociedade se interrogue sobre as condições em que o quadro legal e a acção das forças de segurança identifica este tipo de risco, com ele lida e quais as medidas que melhor garantem a sua prevenção.
Esta avaliação é particularmente oportuna também entre nós no momento que passa, quando se faz o balanço da aplicação da lei das armas adoptada há quase dois anos e quando, aqui e além, nos chegam relatos de cenas de tiroteio em certos bairros ditos problemáticos de Lisboa. É que mais vale prevenir que remediar!
Obs: Infelizmente, António Vitorino tem razão ao alinhar aquelas causas que são geradoras destes trágicos efeitos na sociedade em que se inserem. Quem hoje anda pelas ruas da cidade, frequenta cafés e espaços públicos em geral conhece a forma desinibida como certos jovens desafiam literalmente pessoas mais velhas, por vezes gratuitamente e numa lógica de pura afirmação da sua adolescência, por rebeldia, má educação ou mera vontade de gerar desacatos. Mas também existem comportamentos que escapam a este padrão mais socializado, que é o que decorre de um contexto que inibe socialmente certas pessoas, constrangindo os seus sentimentos, avaliando-os negativamente mesmo sem que eles, de facto, se manifestem numa espécie de censura invisível.
Ou seja, é certo e sabido que há inúmeros jovens que não se integram fácilmente nas actividades escolares, poucos ou nenhuns contactos pessoais têm nesse meio, seja por medo seja por criticismo, a fim de escaparem à desaprovação ou mesmo à rejeição. Em casa, no esteio familiar, o ambiente também não é famoso nem propício ao aplacamento dessa fúria que cresce em silêncio perante o ostracismo cúmplice de toda uma sociedade.
Ora, se certos jovens não se envolvem com os colegas, salvo se estiverem seguros de serem aceites, está criado o quadro cultural e psicológico para a sociedade criar alí uma criança-problema, que com o tempo se vai enquistando, avolumando.
Por isso, as escolas, os pais, os amigos, as autarquias - dadas as suas responsabilidades especiais na educação - a sociedade em geral deve estar atenta para estes pequenos sinais que só muito atentamente se conseguem detectar, antes que seja tarde demais como ora foi o caso na Alemanha que registou aquele massacre. Aqui não se conseguiu prevenir. E como a sociedade portuguesa não é diferente das outras, pois está exposta aos mesmos perigos (fragmentação familiar, efeito de imitação importado da violência interiorizada pelo consumo abusivo de jogos de computador, indiferentismo social, evitamento dos colegas na escola, etc) talvez seja útil que as escolas portuguesas (talvez em articulação com programas especiais das autarquias), na linha da conclusão desta reflexão de António Vitorino (e até pelo título - "Prevenir ou Remediar"), escolham um técnico (psicólogo ou sociólogo), especialmente vocacionado para as questões de comportamento individual e grupal - para dectectar, à nascença, sinais de que as coisas não vão bem com certos indivíduos da comunidade escolar.
Nada fazer neste sentido (preventivo) pode redundar num massacre numa dessas escolas mais problemáticas de Lisboa, Porto ou arredores. De resto, já há abundantes sinais nesse sentido nas escolas nacionais.
Creio que não é necessário sermos psicólogos para compreender que um aluno que revele restrição nos seus relacionamentos íntimos por medo de ser envergonhado ou ridicularizado tem um problema que, pela natureza das coisas, passa a afectar toda a comunidade.
Ora, são precisamente essas inibições e situações interpessoais novas geradas por sentimentos de desadequação que importa prevenir. Sem essas terapias nas escolas, especialmente porque a instituição da família é cada vez mais uma célula desarticulada, certos indíviduos vêem-se a si próprios como seres ineptos socialmente, inferiores aos outros e sem qualquer encanto ou sedução pessoal. É nesse momento que nasce um outro instinto (conjugado): morrer. Embora para alguns indivíduos mais recalcados só faça sentido morrer depois de matar. Foi o caso com Tim Kretschmer, que matou 15 pessoas, 12 delas na sua antiga escola da região de Stuttgart e três na fuga, antes de cometer suicídio.
Lá está: Tim escolheu a sua antiga escola, porque foi aí, provavelmente, que mais dor social interiorizou e recalcou - cujo climax se traduziu naquele massacre. Como quem expia um pecado...
Numa palavra: temos cada vez mais de nos saber "vigiar" uns aos outros nos mais variados contextos sociais. Não o fazer pode significar estar a condicionar ou mesmo a marginalizar alguém que não quer ficar fora do processo de interacção social, e isso pode fazer toda a diferença entre matar ou continuar a viver...