sábado

Fernando Pessoa e a Assembleia de heterónimos da nossa vidinha pública. Um retrato do Portugal doente. Take That. Shrink..

Se Fernando Pessoa fosse hoje ao psiquiatra, este cobrava-lhe uns sete ou oitos contos por cada heterónimo. Pergunto-me que cara levará o poeta Alegre amanhã quando fôr falar com Sócrates para lhe apresentar a factura das presidenciais como contrapartida do seu silêncio...
  • Levará a máscara do poeta-deputado que vota alinhado com a direita
  • Levará a máscara do poeta-deputado que anda cínicamente de braço dado com o radical e trotskista Louçã que não esteve presente na cerimónia a Eduardo dos Santos mas que em 1974 era apologista de Trosksty e de Estaline;
  • Levará a máscara do poeta-deputado que, se pudesse, concorreria contra o seu "actual" partido...

Não sabemos. E se volto ao assunto do poeta não é, seguramente, pela valia intrínseca do seu legado político (cujo valor é histórico e simbólico, mas que parou à data do 25 de Abril), mas pelo facto de podermos constatar, à boleia desse miserável epifenómeno, que a estrutura da personalidade colectiva do povo português ainda é profundamente hipócrita e dualista.

Explicito: os portugueses, muitos deles, ainda proclamam uma coisa públicamente e afirmam outra em privado. Não me reporto apenas à classe política, que está exposta a maior desgaste e tem mais responsabilidade, mas à estrutura da nossa vidinha colectiva: na Academia, na Empresa, no Sindicato, na Igreja, na Associação, também no Partido and so on...
Algo nos traíu aquando da formação da nossa identidade cultural inicial, porque ao dizermos uma coisa em público e outra diametralmente oposta em privado - tal revela que algo descarrilou na constituição do nosso ADN. Isto não pode ser assim apenas por dualidade, hipocrisia ou bipolaridade pré-eleitoral.
Se "mérito" há nesta guerrinha de Alecrim e Manjerouna que o poeta mais egocêntrico da república portuguesa deseja travar com o seu partido, é reconhecermos essa nossa hipocrisa institucionalizada que vai muito para além do "centrão político". Tem raízes fundas na sociedade.
Mas confesso que não tenho certezas nesta matéria. Será porque com a entrada no III milénio ficámos mais paranóicos, achando-nos o centro do mundo?!
Um excesso de amor em torno de nós próprios que faz com que que, de facto, nos coloquemos no centro do mundo com a finalidade de sermos amado por uma personagem ainda mais poderosa?
Não sei...
O que sei é que a nossa mui portuguesinha hipocrisia, que se deve ter consolidado e aperfeiçoado em 40 longos anos de salazarismo, hoje está enquistada no ADN colectivo dos portugueses. E é isso que é lamentável, pois ainda cultivamos um modo de ser medieval, ronceiro, manhoso, dual mas já estamos na modernidade do séc. XXI. Deste gap nascem disfunções culturais, políticas e psicológicas graves na nossa estrutura social enquanto povo. Ou seja, transformámo-nos nuns mentirosos compulsivos e é aqui que teremos de voltar a reler Nicolau, Hobbes, Shakespeare, Kant, Nietzsche, Kierkgaard, Arthur Shopenhauer e até mesmo a "Fenomenologia do Ser" que Pedro Passos Coelho "leu" em primeiríssima mão. Não iremos gostar das conclusões, certamente...
Hoje há pessoas em Portugal que se consideram especiais por ter desancado no velho "Botas", o, para alguns, admirável e saudoso António de Oliveira Salazar. O mesmo que há dias foi retratado num filme de baixo orçamento (rodado pela Sic de Balsemão, que também empobreceu com a crise) e contou com um argumento em que metia o governante a papar meninas de família ante os avisos críticos do cardeal Cerejeira. Resultado: a coisa deu barraca e a crítica foi demolidora. Por mim, desconfio até que o velho de Santa Comba morreu virgem, para desfeita da governanta Dona Maria - que morreu na miséria.
Mas o ponto inicial, para retomar o fio à meada, deve preocupar-nos sériamente. Sem expiarmos esse pecado inicial seremos sempre medrosos, cobardes, seres titubeantes perante a incerteza e a dúvida. Seremos, no fundo, tipos sem carácter, homens sem personalidade e espinha dorsal com receio de afirmar aquilo em que verdadeiramente acreditamos e pensamos. E eu gostaria que no meu País os homens - de esquerda ou de direita - fossem homens de carácter, com personalidade, sem medo.
Tivémos até um General Humberto Delgado (cognominado o "Gen. sem medo") que nos deu esse exemplo, mas "nós", como somos cobardolas - não compreendemos o seu alcance e, hoje, em vez de promover o seu exemplo damos provas de que medramos perante a incerteza do tempo e as nuvens da política à portuguesa num ano composto por três actos eleitorais, ainda que se pense que quem deveria ser julgado era (também) o poder presidencial, especialmente pela omissão de foi autor e por ter acordado tarde demais para os problemas económicos e sociais do País, como até hoje Medina Carreira, ex-mandatário de Cavaco nas últimas presidenciais - denuncia nas páginas do Expresso. Cunhando Cavaco de Marcello Caetano...
Isto é a prova provada de que (também) Cavaco já não diz o que o pensa e, por isso, já há muito que está em campanha presidencial para a sua reeleição, para azar de Manuel Alegre.
Todo este ramalhete denuncia o quadro em que estamos. Um colete-de-forças em busca da autenticidade na política, por forma a que as declarações coincidam com o pensamento. Enquanto este desencontro se mantiver seremos sempre sub-gente, como diria o meu ex-vizinho e amigo João Carreira Bom (que partiu em 2002) e um dia até teve a coragem de mandar às malvas um ex-MNE amigo de Balsemão - que fuma charuto.
Por este andar, um dia ainda nos enganamos, pois pensamos estar a escrever uma carta ao PM ou alguém ainda mais importante, e, afinal, estamos só a fazer poesia barata, a viver do expediente, do aparecer na rádio e na tv pirata - como fazem os cantores pop ou qualquer outro personagem que faça vida de aparecer em público.
Acho que os portugueses devem meditar nisto, talvez possam escrever a sua carta. É possível que recebam uma outra de agradecimento, nem que seja escrita pela secretária que até pode ser uma arquitecta estagiária inscrita na Ordem dos engenheiros. Não interessa.
Como diria um amigo meu do Alto Alentejo: desde que vi um porco a andar de bicicleta, já acredito em tudo...
Digamos que Fernando Pessoa era um homem muito plural.
  • Notas dedicadas à memória de João Carreira Bom. Um grande contista e jornalista. E um homem de carácter.
Take That - Stardust - Rule the World

Monty Python's - Psiquiatra