quinta-feira

Evocação de René Girard: o mecanismo do mimetismo e da vítima expiatória...

René Girard é um cientista social que desenvolveu uma tese interessante, que considera o mimetismo a origem da violência humana que acaba por desestruturar a confiança e a coesão das sociedades modernas. Naturalmente, por trás disto está um sentimento religioso mais fundo, carregado de simbolismos.
Mas o que talvez seja mais curioso notar na imensa obra de René Girard, que começou na Antropologia e evoluíu para outras áreas do conhecimento, é que ele conseguiu descobrir a forma de funcionamento do mecanismo designado de vítima expiatória - que envolve a fundação duma comunidade humana que pressupõe uma ordem cultural, política. Ou seja, todos nós temos desejos, impulsos, paixões, alguns desenvolvem obsessões em relação aos objectos desejados e como não os podem adquirir em tempo real sobrevém a violência. A qual pode derivar duma simples rivalidade mimética que gera, por sua vez, ainda mais violência.
Nos círculos do poder, e dos micropoderes que lhe estão agregados, este tipo de relação é frequente, por vezes fronteira no paroxismo e centra-se num determinado elemento cuja eliminação, como sistematiza Girard, reconcilia o grupo que "triturou" socialmente a ovelha-negra fora do baralho. Ora, esta vítima é importante para este autor, na medida em que fundamenta a própria ideia do sacrifício, do sagrado, do tal sentimento profundo que desce às nossas profundezas.
Se assim é, o legado de René Girard é suficientemente potente e blindado para desafiar Freud no domínio do desejo ou mesmo Karl Marx relativamente ao determinismo económico, que Max Weber já há muito tinha fulminado e, portanto, desactualizado com as causas multi-factoriais que identificou para explicar a emergência do capitalismo na origem do protestantismo - que hoje é alimentado pela galáxia da globalização competiviva - que envolve mercados, Estados e sociedades civis.
Um esforço suplementar leva-nos a operacionalizar a ideia geral de René Girard no mundo da economia assente, como referimos, no mimetismo. Eu compro, por exemplo, acções em bolsa se constatar que muitas outras pessoas o fazem com sucesso. Essa relação de expectativas leva-me a querer ganhar dinheiro imitando os outros que, por sua vez, também repetiram os actos que outros fizeram. Seguindo este fio chegamos às relações de troca que uns e outros fazem no mercado. No fundo, a imitação - na prossecução do lucro/especulativo que é, aliás, uma componente cada mais importante da economia.
Portanto, a especulação resulta, em rigor, da aplicação da teoria mimética da (apropriação) de René Girard. Naturalmente, na base deste mimetismo que leva as pessoas a comprar acções em bolsa está a confiança no mercado, e quando um investidor tem confiança no mercado ele compra, levando - por contágio positivo - milhares de outros agentes a fazer o mesmo. Quando esses investidores perdem a confiança, dá-se o movimento inverso e toda a gente quer vender para limitar os prejuízos, mas trata-se de igual modo de recorrer ao mimetismo.
Por conseguinte, o mimetismo está na base da aquisição na óptica de um lucro e está também na base da venda quando as coisas correm mal. Os investidores que compraram acções BCP gerido pelo velho leão Jorge Jardim Gonçalves têm que "agradecer" a este player ter destruído o banco e enviado para o fundo do poço o valor das cotações das acções com essa marca. E porquê? Porque a confiança desapareceu em resultado duma gestão criminosa e corrupta.
Em rigor, a especulação alimenta-se do próprio mimetismo que leva milhares, milhões de pessoas/investidores a tomar o mesmo tipo de decisões ao nível dos mercados. Seguramente, uma economia demasiado financeirizada torna-se vulnerável. Primeiro, porque os seus activos pouca ligação têm com a economia real (riqueza, emprego, investimentos); em segundo lugar, porque está muito dependente do tal mimetismo dos investidores que, quando as coisas dão para o torto, querem vender todos ao mesmo tempo matando a confiança nos mercados.
O que gera problemas de acesso ao crédito, encarecimento do dinheiro, desinvestimento, mais desemprego, retracção do consumo, empobrecimento das populações. Então, podemos dizer que se cria valor graças à imitação, mas também se destroi valor graças a esse mimetismo quando se perde a confiança no mercado.
Aqui chegados já podemos corroborar a tese de Girard, segundo a qual o valor é fixado através do mecanismo mimético num determinado mercado. E quando as regras do mercado mudam (de um mercado regulado para um mercado desregulado, ou o inverso, como agora se pratica nos EUA e na Europa após o crash) a possibilidade de ocorrer a tal violência é enorme - com os dramas sociais que isso acarreta para pessoas, famílias e empresas.
Em suma, o papel dos Estados - assim como o interesse das pessoas e dos agentes económicos em geral, é o de garantir que o tal efeito de imitação se reproduza na economia a fim de alimentar sistemáticamente a confiança nos mercados. Essa "imitação" opera como o motor da circulação dos bens e serviços que funcionaliza toda a economia. Muitas pessoas a comprar, muitas pessoas a investir... implica saúde na economia e relança novos investimentos geradores de riqueza, emprego e bem-estar nas populações.
Mas temos de regressar à tese inicial de René Girard, também fundada na necessidade de identificação de um culpado, de um bode expiatório. Neste caso, urge encontrar um grande responsável para este crash financeiro que tocou a América e varreu o mundo gerando a actual crise global que todos vivemos.
Só encontrando esse bode expiatório - que servirá para pormos em prática toda a nossa violência agora dirigida contra ele, é que ultrapassaremos o impasse. Até lá viveremos angustiados, esquecidos no tempo, um pouco como alguns príncipes da análise política em Portugal que, agora, se dedicam a escrever livros na esperança de serem os próprios a matar o bode para se livrarem dos fantasmas que sedimentaram ao terem co-criado este regime democrático, alimentado as suas condições de crise e, agora, porque desintegrados da máquina do poder assessorial que ocuparam dirante décadas, pretendem denunciar todas essas ilusões do início, do meio e do fim.
Em rigor, esta crise financeira global serve para muitas coisas, até para ajustar contas com o passado, com a história e com os homens que se cruzarem nessas várias plataformas políticas nos últimos 35 anos em Portugal - nos corredores do poder entre S. Bento e Belém...
Também aqui, infelizmente, René Girard tem razão, pois o homem tende para esse mimetismo sistémico. O mesmo que o leva a comprar acções e especular em bolsa para, de seguida, vender tudo e arcando com os prejuízos. Entre esses dois mecanismos de mercado está o da violência que os homens inevitavelmente vão interiorizando nessas relações económicas mas que, a qualquer momento, podem traduzir-se em regressões históricas que nos fazem recuar no tempo.
Um tempo perigoso porque nos alimenta de ilusões que só nos trazem angústias e decepções. E estas, por sua vez, empurram-nos para sentimentos religiosos primitivos que comportam a tal ideia do sacrifício e do bode expiatório.
O que também não deixa de ser mais uma ilusão...
  • Notas dedicadas ao Casanova FF.
Imitatio Conference 2008: Rene Girard on Mimetic Desire

RENE GIRARD

Regards 3 de 3

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