Smart without purpose. A filosofia da cultura e das religiões. Evocação de Agostinho da Silva
No jogo da compreensão dos factos sociais com peso político global compete à Filosofia orquestrar as articulações e alinhar as conclusões. Ela, vistas bem as coisas, está em toda a parte. É uma espécie de deus menor infiltrada até nos intervalos do invisível. Quando hoje somos convocados a tentar compreender o que significa a palavra "sarilhos" nos moldes e contexto em que foi proferida pelo cardeal patriarca de Lisboa na Figueira da Foz - em regime de tertúlia - ficamos no limbo, entre um "cá" e um "lá". A Sociologia não dava respostas aceitáveis, as Ciência Política é uma grande sacana e só acerta às vezes, a Ciência Jurídica é uma ciência de coxos, estática por natura, não integra as coisas em movimento. Embora ajude a sistematizar as regras invisíveis ou omissas que nunca estão onde devem estar. A Psicologia não mexe com grandes agregados, só explica a loucura de alguns. Sobrou a Filosofia. Regressámos, obviamente, a Agostinho da Silva com quem tive o privilégio de conviver, sobretudo quando as aulas de faculdade me faziam perder tempo com gente completamente desinteressante. E é nessa base que aqui procuramos re-integrar os "sarilhos" do D. José - que não sabia o que havia de dizer à nação, ainda não sei se para ajudar (ou) agravar à crise na economia e na sociedade. E agora, também, na fé entre os homens, e dos homens nele. Na ausência de um conflito (latente ou aberto) entre as nossas comunidades religiosas em Portugal (cristão e muçulmanos) - havia que inovar e fazer a diferença, e aqui uma bifurcação se colocava ao "ponto" que é o nosso "cardeal": ou sugeria um debate intereligioso na Gulbenkian para discutir a cooperação entre as duas comunidades em Portugal, pondo termo ao ciclo de costas voltadas entre ambas; ou fazia-se uma declaração bombástica ao velho estilo do Hamas contra Israel para vender nos media e exaltar as alminhas na república. Só que desta vez quem interpretou o papel de "radical" foi, pasme-se, D. Policarpo - que manifestamente se excedeu na forma. Isto deve interpelar-nos, convocando a nossa dúvida para uma resposta aceitável - acerca do que quer o cardeal com aquela receita de guerra contra os muçulmanos (e não apenas em Portugal). Este leitura obriga-nos a uma análise mais densa que busca compreender por que razão D. José se quis apoderar da sociedade portuguesa (sequestrando-a com tais declarações), assim como no passado recente o PR, Cavaco Silva, criou o seu tabú a 31 de Julho de 2008 e, afinal, era apenas uma mensagem sobre o Estatuto dos Açores. Smart without purpose. É aqui que entram as pulsões humanas, ou seja, o facto de não se ter plano algum para Portugal - seja na política, na religião ou mesmo na esfera empresarial - o homem - dentro da sua fronteira - entra em rivalidade, ou melhor, a sua pulsão faz com que a luta entre grupos rivais justifique um determinado estatuto social, religioso e até material de modo a que uma das partes reforçe os antagonismos e precipite o pequeno ciclo da vingança que as religiões sempre reproduziram, hoje de forma mais subtil - porque as cruzadas são de natureza económica e o mundo também já está todo descoberto e colonizado. Aquilo que o cardeal fez foi, se virmos bem, uma pequena declaração de guerra aos muçulmanos em Portugal. Não para discutir com eles pontes e métodos ou formas de tolerância religiosa, mas para identificar uma vítima. Alguém marcado pelo destino que reunisse o perfil duma estranha comunidade, e sobre ela lançar o pequeno ódio ou pulsão de violência larvar que uma fé pode despejar sobre outra fé - nesse ciclo da vingança que sempre fixou o ritmo de vida das religiões. O cardeal não sabia o que haveria de dizer, mas queria inventar uma questão, fazer um número de circo para media ver e consumo dos tugas, mas ninguém inteligente o levará a sério. Embora se conheçam os riscos inerentes à contracção de matrimónio com muçulmanos, mas isso é suposto as mulheres não muçulmanas saberem antes de casarem. A sociedade - a nossa sociedade - também cria bodes expiatórios para recriar a "diferença" entre homens que professam religiões diferentes, para, desse modo, restabelecer a coesão social que hoje, por razões ecnómicas que remetem para a recessão da economia mundial - nos atrapalha ainda mais. Em face do exposto, pergunto-me o que diria hoje Agostinho da Silva na sequência das declarações de D. José Policarpo, e as máximas conclusões a que me permito chegar, sem obviamente querer usurpar o raciocínio de alguém, muito menos de Agostinho da Silva - que foi o maior filósofo do séc. XX, é que ao criarmos um falso consenso (ou uma paz podre) alavancada através desse bode expiatório - que surgiu do nada - pensamos estar a libertar-nos das rivalidades internas que hoje temos, mas, na realidade, estamos é a aprisionarmo-nos uns aos outros. Foi este, creio, o "servicinho cristão & religioso" que o cardeal nos deixou na sequência dos seus "sarilhos" tertulianos. Ao aceitar voluntáriamente a condição de bode expiatório, Jesus Cristo retira automáticamente à humanidade a possibilidade de continuar a perpetuar esse ciclo de violência mimética e inter-religiosa que marcou, lamentavelmente, os 2000 anos seguintes. Situando-nos a todos no terreno da reconciliação e na ideia de perdão simbolizada na cruz - que também distingue o legado cristão do muçulmano. Ora foi esta mensagem, creio, que o D. José Policarpo ainda não compreendeu. Com este cardeal, percebi que o bode expiatório alcança a sua máxima transcendência nos evangelhos (mal interpretados)... PS: Notas dedicadas a Agostinho da Silva: amigo e mestre.
<< Home