sexta-feira

J'ACCUSE - por Fernanda Câncio -

Há 111 anos, a 13 de Janeiro de 1898, foi publicada a mais grandiosa peça jornalística de todos os tempos. Escrita como carta aberta ao presidente de França, é um apelo indignado em nome de um inocente injustamente condenado, libelo contra um sistema judicial corrupto e uma opinião pública contaminada pela manipulação da verdade e pelos seus preconceitos (o condenado era judeu) através de uma campanha mediática "abominável". Num estilo que cruza o jornalismo e o manifesto, descreve a forma como um homem foi desonrado, julgado e condenado a prisão perpétua com base em provas falsas que, sendo consideradas "secretas", nem sequer lhe foram reveladas, e demonstra como o verdadeiro culpado foi absolvido por juízes cientes da sua culpa. Tem como título J'accuse...! (Eu acuso...!), e é uma defesa empolgada e empolgante da verdade e da justiça.
O seu autor, Émile Zola, sabia ao escrever o risco que corria - aliás, escreveu jogando nesse risco, o de ser acusado de desrespeito e difamação e de poder fazer do seu julgamento a demonstração do que afirmava. Conseguiu o que queria: virar a França a favor do inocente condenado (Dreyfus) - mesmo se à custa de reacções violentas contra ele e contra Dreyfus, incluindo motins anti-judaicos - e reabrir o respectivo processo, mas também ser julgado, três escassas semanas após a publicação do artigo. Foi condenado à pena máxima no caso, um ano de cadeia, a que escapou fugindo para o estrangeiro.
Zola voltaria a França para assistir à reabertura do processo Dreyfus, no qual este foi, incrivelmente, condenado de novo. Seria no entanto "perdoado" e acabaria ilibado em 1906, reintegrado e promovido no exército que o expulsara. Zola, arruinado pela defesa de Dreyfus, tinha morrido há quatro anos, sem ver satisfeita a sua exigência de justiça. Na verdade, a justiça nunca foi realmente feita: ninguém - nem os oficiais do exército que cozinharam a sua "culpa", nem os juízes e procuradores que o condenaram sonegando-lhe as provas, nem aqueles que a propagaram sem se esforçarem por conhecer a verdade - foi julgado pelo martírio de Dreyfus. As forças contra as quais Zola se ergueu, "fraco e desarmado" (como disse Anatole France no seu elogio fúnebre), nunca foram derrotadas - apenas o necessário para, naquele caso, lavarem a face, revendo a decisão que condenara um inocente. Fraco consolo.
O caso Dreyfus, como muitos outros antes e depois dele, mostra o ladro negro do poder do sistema judicial. Quando um sistema criado para certificar a procura e o triunfo da verdade despreza a verdade e funciona como se estivesse acima das leis por cujo cumprimento lhe cumpre zelar, instrumentalizando o extraordinário poder que lhe é conferido, não há Estado de Direito. Sem Estado de Direito, não há grande chance para a democracia, até porque não há para aí Zolas aos pontapés. O que há aos pontapés é gente que, quiçá imaginando-se da estirpe do autor de J'accuse, se compraz em funcionar como guarda avançada dessa instrumentalização da verdade. "O meu dever é falar, não quero ser cúmplice", escreveu Zola. É sempre boa altura para lhe honrar o repto.
Obs: Aproveito para sublinhar que Dreyfus era judeu, e assim que soube da sua acusação os meios anti-semitas comentaram-na ruidosamente, como convinha. Recordemo-nos de que no fim do séc. XIX, por volta de 1894, o mundo inteiro, com pequenas excepções, o julgavam culpado.
O caso de traição enxertou-se fácilmente na paixão colectiva.
Ora, no caso Freeport - há duas coisas que ainda são piores do que ser judeu no passado:
  • Haver um enredo familiar que (alegada e fácilmente) inculpa o PM;
  • Termos um PM reformista que nunca teve receio de enfrentar as corporações;
  • E uma majistratura que destesta o PM, talvez boas razões para a tal manipulação das fugas de informação.

Além disso, dois ou três jornais vivem hoje obcecados com Sócrates, diria até que esses títulos reepresentam hoje contra o PM em funções - aquilo que o Indy representava nas décadas de 80 e 90 do séc. XX contra Cavaco.

O caso Freeport, com as informações hoje disponíveis, é um caso típico de intoxicação da opinião pública, e na altura Dreyfus foi a vítima inocente do medíocre caso de espionagem que, de facto, era o caso Esterhasy.

Daí o paralelo do caso Dreyfus com outros que depois lhe sucederam!? E o mais curioso é que constatar que este caso ocorreu no séc. XIX, mas o século seguinte também conheceu inúmeros casos de espionagem e contra-espionagem, e o séc. XXI - no III milénio - no qual estamos, a coisa volta a repetir-se, embora com outros contornos e motivações. Há, pois, um fio imutávl que atravessa os tempos na história da condenação de pessoas inocentes.

Recordemos aqui que o chamado caso Dreyfus nasceu da descoberta de um documento, uma factura, no cesto de papéis do adido militar alemão, Scwarzkoppen, em Set. de 1894, por motivo de uma semelhança de letra, que permitiu inculpar o capitão do Estado-maior Alfred Dreyfus. Mas não podemos omitir que, então, o referido Estado-Maior era composto por oficiais anti-semitas, que à força e por puro preconceito - se convenceram de que Dreyfus era culpado.

Ele é julgado em Dezembro de 1894 por um Conselho de guerra, e condenado perpétuo a trabalhos forçados e à degradação. E o público unânime, o que é curioso, aprova essa condenação.
Desconheço qual seria o resultado de um julgamento, caso fosse possível à velha majistratura, julgar o actual PM. Admito que o resultado seria semelhante.
Mas aqui o ponto essencial, que a jornalista também não salientou, ainda que possa ter sugerido, é, a meu ver, o seguinte: a condenação do inocente Dreyfus era um meio de garantir o poder. Tese que foi sustentada pelo historiador Henri Guillemin. O qual achava que desde 1894 o Estado-maior sabia que Dreyfus era inocente, mas havia que omitir esse pequeno (grande) detalhe para que a eficácia da condenação surtisse o efeito desejado pela verdadeira conspiração então tecida pela referida corporação militar.
O tremendo preconceito na altura desfavorável aos judeus nos meios militares, a semelhança da letra vertida na tal factura e uma personalidade que não gera empatia, ou era pouco cativante - bastaram para crucificar Dreyfus em França.
Por cá, confesso, não gostaria de ir tão longe nos paralelismos, que são sempre perigosos, até porque Sócrates não é judeu. Mas é reformista, e para certas corporações retrógradas enquistadas na nossa sociedade, que vivem alapadas ao orçamento de Estado, que gozam de privilégios e detestam perder mordomias, ser reformista no séc. XXI ainda é pior do que ser judeu no séc. XIX.
Medite-se nisto. E, já agora, reflicta-se também na raison d'être das selectivas fugas de informação da PGR para os media que emigram directamente do segredo de justiça para o prato de lentilhas de alguns jornalistas.
Este deve ser um segredo de Fátima que o 4º pastorinho da rua da Politécnica ao Príncipe Real - um dia explicará à turba - que anda aos trambolhões, tais são as paixões de Alcochete.