sexta-feira

A corja - de Camilo Castelo Branco -

A Corja espelha o background de toda uma sociedade, por fora e por dentro. Educação, emoções, vivências, rupturas, relações amorosas - agravadas por desníveis sociais, o anticlericalismo, a fidalguia da província, a burguesia urbana, os portgueses emigados no Brasil que regressaram. As novelas de Camilo espelham essa galáxia de mundos. Há quem diga que ao pé de Eça Camilo era um escritor de crimes passionais, ao passo que Eça um escritor mais sofisticado, mais elitista, cosmopolita, com mais mundo. E até era verdade, mas essa distinção não subtrai o imenso valor cultural e literário que Camilo Castelo Branco tem, embora ande muito esquecido entre nós. Creio que merecia ser actualizado, promovido, enfim, tratado com mais respeito e até carinho pelos amantes da cultura.
Recorro hoje a ele porque talvez o seu legado seja demasiado importante e actual para ser esquecido. Hoje são inúmeras as pessoas que agem e reagem em função da relevância do estatuto, e isso tem uma importância camiliana; as pequenas vinganças entre as pessoas encontra também um relevante legado camiliano; a intriga é também um ingrediente típicamente camiliano; a ausência de valores entre as pessoas, os esquemas entre homens e mulheres nas suas relações emocionais, amorosas e passionais é também algo estruturalmente camiliano.
Se olharmos hoje para a sociedade portuguesa, cujas clivagens sociais são hoje agravadas pela crise económica e financeira que varre o mundo, constatamos que aqueles ingredientes tendem a adensar a conflitualidade entre as pessoas e até entre as instituições, que não deixam de ter pessoas por detrás delas. Significa isto que hoje, por razões socioeconómicas objectivas, a predisposição para a litigância sai potenciada entre nós.
Basta tropeçarmos no televisor e ouvir um programa de televisão, por exemplo a Quadratura do Círculo, ao cabo de 60 segundos detectamos as toneladas de inveja, ódio, sobranceria, raiva, despeito que José pacheco Pereira destila sempre que fala uns minutos seguidos. Creio que há uma década ele não era assim, era mais sério na análise dos fenómenos sociais. Mas hoje, enquanto auxiliar do maior traste que demandou a liderança do PSD, Ferreira leite, ele percebe que o insucesso dela representa automáticamente a sua própria derrota como conselheiro, como analista e até como político.
Mas este não passa dum mero exemplo, outros poderiam ser identificados na sociedade portuguesa, porventura com menor densidade e má fé, mas o que aqui é útil evocar na imensa obra do escritor Camilo Castelo Branco é essa tensão, essa intriga, o sarcasmo, as ambições desmedidas, a traição, no fundo, a Corja de que falava Camilo Castelo Branco - que se consubstancia na incapacidade de muitos de nós em não assumir a sua verdadeira natureza. Seja no plano cultural, seja no plano social e político.
Mas como algures se diria, os vícios da sociedade apalpam-se e estudam-se, mas quem tiver a vaidade de os corrigir é como aquele rei que mandava açoitar o Oceano.
Este caldo de cultura decadente evoca-me novamente esse intelectual cada vez mais sectário em que se tornou Pacheco Pereira, que construíu a sua imagem nos media, vive come e dorme lá, sem que daí decorra algum benefício para os telespectadores que hoje vêem nele, ao invés de há uma década, o nosso primeiro profissional das letras na política, que sera tragado por elas.