Lançar os olhos sobre Guernica - universalizado por Pablo Picasso -
Guernica a 3D, por Lena Gieseke, aqui
Primeiro a realidade, depois a arte. E o que a realidade nos diz é simples: somos hoje cada vez mais cidadãos do mundo, e também cada vez mais ibéricos. Certas artérias de Lisboa só têm empresas espanholas. Por isso, faz todo o sentido evocar aqui a desgraça que os "amigos" Adolfo e Franco fizeram sobre essa pacata vila espanhola, Guernica - que Pablo Picasso - numa loucura de génio pintou e imortalizou. Temos de saber evocar as desgraças para que elas não voltem a cair-nos encima.
BREVES NOTAS SOBRE GUERNICA A 70 ANOS DE DISTÂNCIA
Uma obra de arte é sempre um desafio: pode resultar num sucesso, mas também redundar num fracasso. Nunca, verdadeiramente, a conseguimos explicar, ajustamo-nos a ela. Ao interpretá-la, fazemos uso das nossas lentes, dos nossos objectivos e interesses, denunciamos a nossa cosmovisão e atribuímos a essa obra um determinado significado que encontra origem nos nossos próprios modos de viver e de pensar. O que sucede, por exemplo, se olharmos o famoso painel de Pablo Picasso, Guernica, datado de 1937?
Naturalmente, cada homem é uma ilha, cada geração vê algo distinto da outra que a sucede, porque também foi marcada por mais ou menos guerra, mais ou menos prosperidade, mais ou menos esperança. Por isso, não se deve dizer que cada pessoa lê melhor o significado de uma obra de arte do que outra. Sendo certo que o significado que uma obra assume para uma geração posterior, como a minha que não viveu o pré-II Guerra Mundial - marcada pelo ensaio geral que foi a guerra civil espanhola - é o resultado de uma série completa de interpretações anteriores.
E é meramente a esse título, sem qualquer tipo de pretensão, que aqui deixo simples traço sociológico acerca dessa grande realização artítica e cultural patente no painel de Pablo Picasso, com 350 por 782 cm, cuja tela traduz o bombardeamento sofrido pela pequena cidade espanhola de Guernica, em Abril de 1937 pela aviação germânica. Que então, por força das alianças entre regimes ditatoriais uniu Adolfo Hitler a Francisco Franco, e desse resultado destruidor para as pessoas, para a sociedade e para a cidade e edifícios terá resultado a visão artística de Pablo Picasso. Obra que depois integrou a Exposição Internacional de Paris, foi exposta em Espanha e depois passou a repousar no Centro Nacional de Arte Rainha Sofia, em Madrid.
O que Pablo Picasso viu nesse bombardeamento que destruíu a cidade de Guernica foi aquilo que, aparentemente, qualquer um de nós veria: uma cidade em escombros, carbonizada, com mau cheiro, completamente arrasada em resultado do desatino dos homens e dos seus projectos megalómanos de conquistar o mundo. Mas a lente do artista, porque o é, e, como tal, goza de sentidos mais apurados e de faculdades de interpretação do mundo mais sofisticadas, terá levado Picasso a ver outras formas e interacções para retratar aquela barbárie. Foi o que fez ao colocar na tela os frisos dos templos gregos, com um enquadramento triangular - conferindo um realismo assustador a toda aquela representação em tela da destruição real de toda uma cidade.
Rever hoje Guernica não deixa de ser um desafio para a memória (histórica, futura..) e da inteligência e sensibilidade dos homens. Pela arte também podemos concluir por aquilo que não mais queremos, apesar de a guerra ser uma constante em certos pontos do mundo e, ao mesmo tempo, incutir em nós uma sensibilidade artística que nos permite ver para além do horizonte e do zenite. No fundo, Guernica opera em nós uma espécie de treino extra-sensorial que nos pode suscitar a dimensão da metamorfose que nos conduz ao velho problema do homem e do Estado, constante na Paz e Guerra entre as Nações, de resto título de um livro de Raymond Aron - que balizou toda a conjuntura do post-II Guerra Mundial.
E ao dar-nos essa faculdade extra de poder ler o mundo (e intervir nele, humanizando-o), em múltiplas linguagens, de que a pintura constitui um género importante de arte está, em rigor, a conduzir-nos à própria realidade. Ou seja, a arte é esse bálsamo que opera em duas pistas: evasão da realidade e recondução à realidade. Guernica, creio, representou majistralmente essa dupla função da arte. E, ao mesmo tempo, dá-nos uma leitura da vida que nos permite enfrentar com maior êxito o estado caótico das coisas e extrair da vida um sentido superior.
A guerra e os bombardeamentos não desapareceram, os artistas também não. Que se saiba a natureza humana é (também) a mesma desde há milhares de anos. Cooperante e conflituante, consoante as circunstâncias e os interesses em jogo.
São esses acontecimentos excepcionais imbricados nos homens e mulheres de cada tempo que moldam uma época, formatam uma conjuntura e um quadro de mentalidades. Hoje continuamos a produzir arte, temos novas formas de guerra e tecnologias tão sofisticadas quanto destruidoras, emergem artistas com sensibilidades diferentes e, no meio de tudo isso, porque somos homens e temos inteligência e produzimos cultura e civilização, não deixamos de ter a necessidade de dedicar aos amigos aquilo que vamos fazendo. Seja em contexto de paz ou de guerra, de tranquilidade ou de fúria, de serenidade ou de revolta ante a barbárie - como fez Pablo Picasso ao criar Guernica que, não devemos esquecer, foi, ab initio, pensado com a finalidade de homenagear um amigo toureiro, Joselito.
Hoje, apesar da passagem do tempo desde 1937, pouco ou nada mudou: a guerra continua sob outras formas (demonstrando que a natureza humana pode ser cruel e cooperante), a arte também se vai produzindo, os artistas vão criando e sobrevivendo e todos, duma forma ou doutra, continuam a ter necessidade de dedicar a sua criação a algum amigo. Todos nós, no fundo, temos o "nosso Joselito" (de Picasso).
Mas isto não obsta a pensar que o artista é um introvertido que, devido a impulsos instintivos excessivos, é incapaz de se adaptar às necessidades da realidade prática, que, em busca de compensação, se volta para o mundo da fantasia e da arte - encontrando aí - nessas representações - um substituto para a satisfação directa dos seus desejos. Seja em tempos de guerra, seja em tempos de paz, seja no tempo das emergências recorrentes que hoje vivemos.
Numa palavra: a arte, toda a arte, consiste numa conversão das suas exigências não realistas em propósitos realizáveis. Foi esse o exemplo que Picasso deu ao mundo, ficando até conhecido através de Guernica. Foi esse também o seu poder de sublimação, salvando-nos do castigo ou da doença, e no caso de Picasso - foi até uma janela de oportunidade para toda a sua brilhante carreira, exemplo universal que hoje, singelamente, aqui evocamos.
Depois da realidade, a arte. Ou é o contrário...
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