Eduardo Lourenço (EL) é, em Portugal, provavelmente o poeta-ensaísta-filósofo vivo que mais e melhor consegue discorrer sobre a vida e obra do maior poeta do séc. XX, Fernando Pessoa (FP). Por um lado, porque EL não se leva muito a sério, ou melhor, sabe cultivar um módico de estoicismo e de indiferença por ele próprio que torna impossível a tarefa a alguém que lhe queira colocar questões (responde sempre como filósofo, e não como poeta); por outro, porque do alto dos seus 85 anos - tudo lhe é permitido, até ser um complexo intérprete de FP - de quem se sentiu profundamente marcado - e que morreu sem glória. Mas o facto de ter morrido assim, incompreendido, não significa que não nos tenha deixado uma termenda companhia imaginária, repleta de aventuras que hoje, no aqui e agora dos nossos dias, aproveitamos como sabemos e podemos na imensidão dessa assembleia de heterónimos que o poeta-mor nos deixou. Mas ao deixar esse poderoso e multifacetado legado, deixou-nos também a insónia - que afectou o próprio EL, e a partir dela estimulou a inquietude que nos obriga a olhar para o mundo como um pólo de criação e recriação permanentes. Por vezes, empurrando-nos para um certo labirinto da saudade, perdido entre o consciente e o inconsciente em busca dum mapa humano que nem sempre encontramos. Ou melhor, encontramos através do desassossego.
Pessoa foi, porventura, o poeta que mais sózinho morreu, como um cão abandonado numa valeta - para quem todos olham mas a que ninguém estendeu a mão, mas é hoje o poeta cuja solidão hoje - curiosamente - mais nos acompanha. Com a sua poesia, o seu ensaio, a sua prosa, o seu sujeito, o seu anonimato.., sempre grandiosos e inspiradores.
Pessoa ajuda-nos a perceber no que hoje todos nos tornámos, nas nossas vidinhas hodiernas, elos fragmentados em busca de unidade, actores mais ou menos sucedidos de narrativas falhadas e outras nem tanto... Todos nós, com Pessoa, somos hoje actores de nós próprios, felizes e infelizes numa dispersão incontrolável povoando este nosso mundinho moderno.
Como Pessoa, ED sabia que era a poesia que nos ligava ao mundo, para dar nomes às coisas e se, possível, atribuir-lhes um sentido. Por vezes, trágico, com Antero de Quental, outras com encantamento, outras ainda denunciando esse desencantamento do mundo - que Weber por essa altura - também racionalizava no plano do estudo do sistema capitalista e da sua interferência com a vida das organizações.
Ver Eduardo Lourenço - aos 85 anos - com insónias e pleno de inquietação é, de facto, uma dádiva dos deuses, porque geradora de energias para criar mais pensamento acerca do nosso mundo e das nossas Letras.
A dada passo da sua imensa e valiosa Obra, EL diz o seguinte de Pessoa:
Em determinados momentos, daqueles que dizemos serem momentos de verdade, cada um de nós tem o pressentimento de que a verdadeira realidade, a do mundo, a dos outros e, sobretudo, a nossa, não passa de pura ficção. Aquilo que para o comum dos mortais não é senão uma vertigem passageira foi, para Pessoa, uma vertigem de todos os instantes, de que nem Deus, nem os homens, nem sequer as palavras que criou como se fossem anjos podiam libertá-lo.
Creio que se todos nós cultivássemos essa instância da ficção pessoana, como quem compõe para si próprio uma ópera e a canta baixinho, todos compreenderíamos as vantagens do seu sistema de pensamento, as suas perturbações, as suas insónias, aventuras, narrativas mais ou menos perturbadoras do nosso tempo, e de sempre.
Ao fim e acabo, ainda que não o admitamos - por vergonha, humildade ou estupidez, todos desejamos tornar-nos criadores d' algo, fazer uns milagres e, se possível, valorizar a humanidade.
Numa palavra: Não somos nada, Somos apenas ficção. Por vezes, da pior...
Outras vezes, lá inventamos uns milagres cuja génese e alcance desconhecemos.
No fundo,
Grandes são os desertos, ó minha alma,
grandes são os desertos
e tudo é deserto.
Ou, citando o Eclesiastes, tudo é vaidade e vento que passa.
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