Separação de águas - por António Vitorino -
SEPARAÇÃO DE ÁGUAS, in DN
António Vitorino
jurista
A tripla crise em que vivemos - financeira, energética e alimentar - demonstra não só a interdependência do mundo actual mas também o impacto assimétrico dos seus efeitos nas várias regiões do globo.
Se é inegável que o desenvolvimento de cada uma delas acaba por funcionar como um catalisador das demais, a manifestação de cada crise é diferenciada nas várias regiões do mundo.
A crise do subprime atinge os Estados Unidos e a Europa, mas não se projecta para a Índia, a China ou o Brasil.
A crise alimentar atinge em primeira linha os países em desenvolvimento mais pobres, em África e na Ásia, mas não se traduz em escassez de bens alimentares nos países mais desenvolvidos.
A crise energética pune, sobretudo, os países mais desenvolvidos, especialmente os dependentes de importações de petróleo, mas engorda os fundos soberanos dos países produtores.
Em todas elas, contudo, estão presentes elementos sistémicos comuns, que importa ponderar e dessa reflexão tirar algumas lições.
É evidente que, nos três casos, estamos perante crises típicas do sistema capitalista que dão origem a leituras distintas e efectivamente contrapostas em vários quadrantes políticos.
Há quem nelas identifique a entrada numa fase terminal do sistema capitalista, logo centrando as suas preocupações e o seu discurso na procura de um outro modelo económico alternativo.
Por contraste, há quem nelas veja a convergência de três bolhas do sistema que crescem e explodem, gerando uma crise de macrodimensão que vai determinar a entrada num novo ciclo de transformação do próprio sistema capitalista.
Há nestas duas visões uma clara separação de águas não apenas na perspectiva das orientações políticas a prosseguir no quadro da resposta à crise mas também no plano ideológico mais geral.
O sistema capitalista tem a inegável vantagem comparativa de ser o único até hoje que passou a prova dos factos, contemplando ao mesmo tempo liberdade e desenvolvimento económico. Mas isso não o isenta de perversões e excessos, que estão na base de ciclos de crise onde as contradições conhecem momentos de explosão que conduzem à reconfiguração de variáveis essenciais do próprio sistema.
No caso vertente, estou crente que as coisas se passarão de novo desta forma. Uma certa desorientação da resposta à convergência das três crises assinaladas põe em evidência dois dados essenciais para reflexão futura: por um lado, a debilidade das instâncias internacionais de regulação, que limita o acervo de instrumentos de resposta e, por outro, a incapacidade de o mercado globalizado, por si só, gerar os pontos de equilíbrio que conciliem a inovação com a estabilidade das regras fundamentais do seu próprio funcionamento.
A este dilema uns respondem com a exigência de mais liberdade de mercado, vendo a crise como um momento de "destruição criativa" do próprio sistema e outros colocam o acento tónico na necessidade de reformulação e refinação dos mecanismos regulatórios à escala planetária. Aqui se separam os liberais puros dos socialistas e sociais-democratas.
Já para os que vêem nesta tripla crise o "canto do cisne" do capitalismo global, sendo prudentes na formulação de um tal modelo económico alternativo, por forma a evitarem identificações embaraçosas com outros bem recentes que levaram à implosão da União Soviética, colocam o acento tónico numa "cidadania global" que deveria fundar a prevalência dos valores de solidariedade e de coesão sobre os valores da liberdade de circulação dos capitais e da iniciativa económica privada. Mas no meio da nebulosa deste posicionamento político e ideológico, as águas também se separam entre os que procuram sobretudo respostas globais (do tipo "taxa Tobin" para as transacções financeiras internacionais em nome de valores de redistribuição global) e os que preconizam pura e simplesmente o retorno ao proteccionismo nacional (reforçado pela nacionalização dos sectores económicos estratégicos).
E é aqui que também as águas se separam entre as esquerdas... Mesmo entre as esquerdas da esquerda!
Obs: Esta é, seguramente, uma reflexão estimulante. Pensando a frio o que apetecia dizer é que se Deus já não é brasileiro, como se diz na gíria futebolística, pelo menos poderia ser português, mas a generalização dos pressupostos do Consenso de Washington geradores da globalização predatória dizem-nos que que o tal deus não fala português - em nenhum dos lados do Atlântico. E para nosso consolo parece até que não fala inglês, francês, alemão e tende, ao invés - numa espécie de vingança da história, a falar mais chinês, indiano e nas chamadas potências globais emergentes. Acresce que são múltiplos os desafios intelectuais aqui colocados por António Vitorino, e aquela tripla crise que enuncia desactualiza as versões a década de 80/90 introduzidas por Fukuyama, por Samuel Huntington, mas também por Robert Cox, o neomarxista Imanuel Wallerstein, Manuel Castells - cujas preocupações se centraram na inevitável crise do capitalismo, considerando que essa forma de organização e de estruturação da economia e da sociedade não poderá (mais) absorver as tensões sociais e ecológicas que o seu próprio desenvolvimento gera. Designadamente ao nível das suas implicações nas crises fiscais dos Estados, agravadas, como sublinha AV - por aquela troika de crises sistémicas que hoje estão a abanar o mundo - como se ele, de súbito, se transformasse num (instável) jogo de bilhar. E aqui abrem-se três modelos que permitem considerar: 1) a dinâmica dos fluxos em crescimento continuado; 2) a Regulação da globalização; 3) e a inevitável crise do capitalismo cujos contornos nem o poeta Manuel Alegre conhece. O primeiro está comprometido pela dependência energética, desemprego e crise de confiança nos mercados e naquela interdependência assimétrica que António Vitorino enumera, lembrando o legado intelectual duma obra de referência de R. Keohane e J. Nye - Transnational Relations and World Politics (1971); o segundo carece de instituições fortes e globais que sejam eficientes e eficazes, tipo ONU, embora não se veja nem como nem quando, já que essas mesmas instituições acabam por exprimir a correlação de forças dos Estados no sistema; e a terceira opção - que considera que o capitalismo vive hoje problemas insolúveis para a sua regulação e para o controlo da formação do capital - também não abre espaço a grandes esperanças. Numa palavra: o mundo está "lixado", entrou num beco-getho. E porquê(?) Não se consegue impedir a desruralização das sociedades, fazendo com que largas camadas da população aflua para o litoral, criando aí novos problemas; daí resultam consequências ambientais terríveis com externalização dos custos e com exigências crescentes que depois são colocadas nos Estados, logo pesando na carga fiscal/tributárias das populações. E, por todas estas razões e factores de passivo no sistema, os Estados defrontam-se com uma progressiva perda de legitmidade no sistema internacional e nas funções de cada Estado, deixando esses mesmos problemas, como se viu naquela pobre entrevista que o poeta Alegre foi dar à estação de tv paga com os impostos de todos nós, sem resposta consistente e sustentável. Todavia, cremos que para se interpretar bem esta complexidade de crises (múltiplas) que hoje atordoam o sistema convém identificar bem a crise, o que implica perscrutar a natureza do capitalismo, o qual, paradoxalmente, assenta numa ambiguidade: se, por um lado, ele se apresenta como um sistema baseado no livre jogo do mercado e na tal mão-invisível de que falava Adam Smith, ele não pode funcionar em condições de efectiva liberdade de mercado. Pois se o Estado não actuar e intervir junto daqueles sectores mais vulneráveis todos sabemos o que sucede a seguir: mais pobreza, miséria e caos. Até porque o mercado, na linha de Karl Polanyi, é uma invenção do Estado. O problema está, como sempre esteve, no tempêro e articulação da fórmula. Mas hoje, mais do que nunca dada a complexidade dos problemas e a existência de crises múltiplas a ocorrerem ao mesmo tempo e em todo o lado, em saber temperar doses adequadas de Estado e de mercado. E isto, somado às questões de cidadania global que António Vitorino formula são, hoje, os ingredientes que podem distinguir a esquerda da direita. Uma coisa é certa: até há bem pouco tempo, eram os fluxos do poder que geravam poder e faziam a lei no sistema; doravante, são os chamados poder dos fluxos (de capitais, tecnologias, ideias, pessoas, etc) que produzem as orientações nos centros de poder político, mesmo quando eleitoralmente legitimados pelo voto ou apoiados por um poder militar regular, mas que a qualquer momento pode ceder diante dos tais fluxos dos capitais, dos bens, dos recursos humanos qualificados e dos chamados centros de racionalização estratégica que hoje criam a ordem e o caos neste nosso mundo. Um mundinho povoado de poetas armados em políticos e, mais grave ainda, é quando esses políticos se armam em estadistas. Quando isso acontece, quiça resultado da nostálgia do herói-mítico e romântico, não há petóleo que resista. Tudo visto e somado, pergunto: será que fará algum sentido pensar na resolução global para aquele crise múltipla ("financeira, energética e alimentar") e dela vislumbrar um separar de águas entre a direita e a esquerda neste mundo que alguns já designam de post-globalização?!
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