sexta-feira

INOPERÂNCIA - por António Vitorino -

INOPERÂNCIA António Vitorino
jurista
Na cena internacional, é muito frequente confrontarmo-nos com situações típicas de "dois pesos, duas medidas". A independência do Kosovo é mais um exemplo. Quer no plano jurídico quer no plano político.
Do ponto de vista do direito internacional, não há muitas dúvidas de que, face ao impasse no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o plano Athisari, a subsequente declaração unilateral de independência é contrária à Resolução 1244, de Dezembro de 1999, que reconhecia que o Kosovo era parte integrante da Sérvia, gozando de uma ampla autonomia. Mesmo algumas interpretações forçadas da Carta das Nações Unidas (inspiradas numa surpreendente analogia com o direito de autodeterminação dos territórios não autónomos) não são suficientes para esconder a realidade: mais uma vez a divisão entre os membros permanentes do Conselho de Segurança deixou o campo aberto para as actuações unilaterais e a imposição de situações de facto baseadas na relação de forças do momento.
Países que normalmente se mostram zelosos na defesa da observância do direito internacional, como a França, apressaram-se a reconhecer a independência do Kosovo, deixando no limbo do esquecimento a questão da violação daquela Resolução. Por contraste, quem, no seu registo de actuação passada, várias vezes silenciou a importância da legalidade internacional, como a Rússia, apressa-se, agora, a usar o argumento jurídico da Carta para se opor à independência do Kosovo.
Contudo, mais importante do que analisar a coerência da actuação de cada um dos membros do Conselho de Segurança da ONU neste caso, é sublinhar que mais uma vez se prova à exaustão que o actual sistema das Nações Unidas se mostra desfasado dos desafios da regulação política internacional.
Com efeito, quando há dois anos a iniciativa de reforma das Nações Unidas, desencadeada pelo então secretário-geral Kofi Annan, resultou num impasse, todos percebemos que tal correspondia aos interesses, explícitos ou implícitos, dos actuais cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. O preço a pagar seria uma ONU manietada nas grandes questões internacionais pelo mecanismo do veto. Ora, o veto constitui não apenas uma válvula de segurança para as grandes potências que dele beneficiam, mas também um factor que alivia a pressão sobre uma verdadeira e própria negociação. Dito de outro modo: o veto premeia a inércia, consolida o statu quo e vulnerabiliza a força coerciva do direito internacional.
Para que serve então um sistema da ONU que apenas se mostra operante naqueles casos em que nenhum dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança considere estarem em jogo os seus interesses fundamentais ou de algum dos seus "protegidos"?
Entendamo-nos bem. Não há, na cena internacional, modelo alternativo ao das Nações Unidas para a regulação política global. De igual modo, a existência do veto não vai (nem provavelmente pode) desaparecer no horizonte previsível. Alargar a lista dos países com direito de veto poderia ampliar os interesses geo-políticos com acesso a esse poder acrescido, mas daí não resultaria nenhum benefício relevante para a credibilidade da organização ou para a efectividade do direito e da legalidade internacionais.
Logo, o caminho terá de ser o de institucionalizar contrapesos ao uso do veto, promovendo mecanismos de negociação internacional mais prementes em termos de obrigação de resultados. Ou seja, fazer com que o veto, em vez de premiar o impasse, faça acrescer a responsabilidade de quem o detém na resolução das crises internacionais em benefício da paz, da estabilidade e do respeito pelo direito internacional. A ausência de resultados num horizonte determinado deveria, pois, permitir mecanismos de superação desse veto.
Se assim não suceder, assistiremos, cada vez mais frequentemente e sempre com renovada estupefacção, ao silêncio comprometido do secretário-geral perante a violação do direito internacional. O que só reforça nos espíritos dos cidadãos do mundo a imagem de inoperância das Nações Unidas.
Obs: Felicite-se António Vitorino por esta interessante e sustentada análise de Direito Internacional Público - que tomou como referência a declaração unilateral de independência do Kosovo para concluir pela falência das promessas recorrentes de reforma da ONU, salvo se se caminhar para institucionalizar contrapesos ao uso do veto. Creio, todavia, que o melhor que se aproveita desse "elefante branco" (sempre bloqueado pelo CS - nascido ao tempo da Conferência de Yalta - remete-nos para o importante papel que as chamadas Agências especilizadas tiveram nestas últimas décadas...
Devo confessar, por outro lado, que a 1ª coisa que me ocorreu quando li o título do artigo - INOPERÂNCIA - até supor que o pensamento político valorizava mais ou menos as Agências especializadas - só me ocorreu pensar na situação da autarquia de Lisboa.
Porque razão, além da força de bloqueio do psd na AML - agora surge um tertium genius que, curiosamente, se denomina Tribunal de Contas, e já não esconde a ninguém que também faz apreciações políticas - para as quais não é competente ajuizar ou decidir.