segunda-feira

A inveja tem as costas largas - por Francisco Sarsfield Cabral -

A inveja tem as costas largas, in Público
Não surpreendeu a notícia de que a recente saída de cinco administradores custou ao BCP 70 milhões de euros, a abater aos resultados de 2007. Este banco habituou-nos a uma generosidade extravagante para com os seus gestores, à custa dos accionistas. Antes, o Presidente da República tinha sido criticado ao pôr em dúvida “se os rendimentos auferidos por altos dirigentes de empresas não serão, muitas vezes, injustificados e desproporcionados, face aos salários médios dos seus trabalhadores”.
A insensibilidade dos bem-pensantes às desigualdades de rendimentos, onde Portugal é o triste “campeão europeu”, terá várias explicações, além do interesse próprio (cada um adopta a filosofia das suas atitudes). O esquerdismo igualitário que se seguiu ao 25 de Abril não ajudou a nossa economia. Diz-se, e bem, que uma sociedade onde se pretenda igualar riqueza só poderá ser totalitária, além de economicamente estagnada.
Daí a insistência em que a liberdade prevaleça sobre a igualdade. O colapso do comunismo deu nova força à economia de mercado, desigual por natureza. A vitória do capitalismo estimulou a despreocupação pelo valor da igualdade e pela observância de princípios éticos no mercado. No entanto, os escândalos em Wall Street e em empresas como a Enron ou a WorldCom vieram lembrar a importância da ética nos negócios, até como condição de bom funcionamento dos mercados.
Ora, não sendo um valor absoluto, a igualdade é moralmente relevante. Desde logo, como observou Amartya Sen, todos os sistemas éticos partem da ideia de uma qualquer igualdade: de rendimentos, de dignidade, de oportunidades, de liberdade, etc. E embora o igualitarismo seja opressivo, há desigualdades que violam elementares critérios de decência e de solidariedade humana, além de valores mais pragmáticos, como a coesão social.
Argumenta-se que quem protesta contra as desigualdades o faz por inveja. A inveja existe, claro, e é um defeito. Mas há boas razões para não aceitar toda e qualquer desigualdade como preço a pagar pela liberdade individual e empresarial.
As sociedades desenvolvidas estão a regressar às desigualdades que o capitalismo industrial havia atenuado e até a estratificações de classe que lembram o antigo regime pré-industrial. Noutros países, os altos vencimentos dos gestores de empresas estão há muito na ordem do dia. Por cá, atrasámo-nos como de costume - os extraordinários ganhos dos administradores do BCP apenas emergiram no debate público com a falhada OPA deste banco sobre o BPI e com as desavenças recentes.
Também se argumenta que, se não ganharem fabulosamente em Portugal, os gestores vão para o estrangeiro. Mas muitas empresas portuguesas já oferecem aos seus gestores de topo ganhos iguais ou superiores aos correntes em países mais ricos, onde o custo de vida é superior.
Aliás, nesses países Bush, Angela Merkel, Sarkozy e outros políticos têm criticado o exagero nos ganhos dos administradores. Mas a crítica importante vem dos donos das empresas – os accionistas. Na Suíça, por exemplo, é um empresário, Thomas Minder, a encabeçar a luta por uma “democracia de accionistas”, contrariando a cupidez dos gestores.
Nos EUA, em França, nos países escandinavos e noutros já foram ou estão em vias de ser tomadas medidas para travar os exageros nos ganhos dos administradores. Mas as leis, aqui, têm um papel limitado – importa sobretudo que imponham uma maior transparência quanto aos vencimentos de cada gestor.
O papel decisivo cabe aos accionistas, em vez de os vencimentos dos gestores serem corporativamente decididos por colegas executivos noutras empresas (caso dos EUA). Os accionistas devem exigir que os ganhos dos administradores correspondam à “performance” da empresa - e não apenas a curto prazo, como acontece quando o indicador é a cotação das acções.
Há dois meses o presidente da Merril Lynch saiu com um envelope de 160 milhões de dólares, depois de o banco ter perdido 8,4 mil milhões. E o ex-presidente da EADS, que controla a Airbus, levou também uma indemnização milionária, com a empresa a debater-se numa grave crise.
Casos como estes tiram legitimidade à economia de mercado, porque não a tornam mais eficaz e são moralmente repulsivos. Importa denunciá-los, ainda que nos chamem invejosos, demagogos ou economicamente incorrectos.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: Confesso que apreciei aqui ver o Francisco citar Amartya Sen, o grande autor e Nobel da economia que já esteve na Gulbenkian a falar das questões do desenvolvimento, em que é uma autoridade mundial. Publique-se este artigo por manifesto interesse público.