sábado

Será que a luta de classes está de regresso? José Adelino Maltez e Joaquim Aguiar (et al.) respondem-nos

Se o Marx cá viesse muito provavelmente diria: eu (também) já não sou marxista!!! Ou(i) não??

in Semanário...

"As limitações ao Estado Providência, a perda de direitos e regalias, a erosão dos salários, o aumento do desemprego, realidades que hoje se fazem sentir em muitos países da Europa, particularmente em Portugal, podem ser, a longo prazo, o gérmen de uma nova luta de classes, à luz dos conceitos marxistas?
O SEMANÁRIO fez esta pergunta a vários pensadores portugueses, como foi o caso de Jaime Nogueira Pinto, Joaquim Aguiar, José Adelino Maltez, José Gil, Manuel Villaverde Cabral e Ivan Nunes.
Joaquim Aguiar
Joaquim Aguiar é peremptório. "A crise encoberta do Estado Providência na Europa gera uma crise visível e generalizada de condução política, difunde efeitos sociais de insegurança e de acentuação das desigualdades, promove fenómenos de criminalidade difusa e segmentada, mas não gera movimentos de luta de classes."
Este politicólogo, assessor do Presidente da República, Cavaco Silva, depois de o ter sido, também, de Mário Soares e Ramalho Eanes, não deixa, porém, de abrir a porta, num contexto de crise social, ao que chama "expedientes de sobrevivência individual", que irão "pôr em causa o contrato social de solidariedade entre grupos de rendimentos e entre gerações, impedindo a instalação de dispositivos de políticas sociais que ainda pudessem ser sustentáveis nestas novas condições."
Joaquim Aguiar traça um quadro ainda mais negro quando diz: "Neste novo contexto de insegurança social, sem previdência (financeira) e sem providência (divina ou de distributivismo social), haverá quem justifique o recurso a formas de criminalidade com as imagens de movimentos revolucionários (como na América Latina) ou com as fidelidades a redes de protecção e de influência (como na Itália meridional). São disfarces ou máscaras, que encobrem fenómenos cuja verdadeira natureza é o ajustamento a novas situações pela via de procedimentos ilegais e ilegítimos."
Mas nem por isso Joaquim Aguiar se afasta da sua tese, rematando: "Nada disso gerará movimentos de luta de classes, pela simples razão de que não há centros de acumulação de recursos financeiros que possam ser apropriados para posterior distribuição. Não há movimentos de luta de classes para ir apropriar dívidas e responsabilidades futuras. Onde não houver centros de acumulação de riqueza, não haverá mobilização para movimentos de transformação revolucionária."
O politicólogo aproveita, ainda, para fazer uma radiografia da crise do Estado Providência e das contradições dos governantes ao lidarem com ele. Antes defenderam-no, hoje fazem a sua desmantelação mas nem por isso continuam a justificá-lo e defendê-lo. Diz Joaquim Aguiar: "A crise do Estado Providência continua encoberta porque os que se referem a ela são os mesmos que antes instalaram e defenderam esses dispositivos de políticas sociais e que sempre recusaram que eles fossem insustentáveis. O que fazem agora, dizendo que querem salvar o que antes garantiam que era eternamente legítimo e possível, é uma política a que não atribuem nome: desmantelam o que antes instalaram com a redução dos direitos que atribuíram, mas justificam o que fazem dizendo que querem defender o que estão a desmantelar. E terão de continuar a fazê-lo no futuro, porque o crescimento económico medíocre não permitirá compensar os efeitos do envelhecimento demográfico e do aumento dos custos com a saúde, a educação, os serviços do Estado e a construção de infra-estruturas. Considerando o que já é o nível actual de extracção fiscal na Europa, esta redução de direitos do Estado Providência não permite o ajustamento das sociedades com o retorno a modelos de segurança individualizada (poupança ou seguros) porque o rendimento disponível diminui para continuar a financiar o que não será sustentável, o que implica que aumentará o grau de insegurança individual e colectiva."
José Adelino Maltez
Também José Adelino Maltez não parece considerar que desponte uma nova luta de classes. Escreve este professor da Universidade Técnica de Lisboa: "O que agora temos é uma nova questão social, misturando problemas não resolvidos da velha questão social, que Jerónimo de Sousa ainda traduz no calão da velha luta de classes, com a emergência de uma nova realidade da governança sem governo, que tanto dizemos ser integração europeia como globalização.". Também Adelino Maltez começou por fazer o raio X ao Estado Providência: "O chamado "Estado Providência", ou, em termos gerais, a intervenção dos aparelhos de Estado na sociedade e na economia, tanto pode ser a resposta bismarckiana à questão social da segunda metade do século XIX que, em Portugal, foi traduzida pelo Estado Novo salazarento, com meio século de atraso, como o "Welfare State" do pós-guerra, do relatório Beveridge, que começou a ser traduzida entre nós com o marcelismo, pintando-se de vermelho pintasilguista com o PREC e a pós-revolução do Bloco Central, dita keynesiana."
Adelino Maltez não deixa de elogiar Marx, o que só surpreende quem não o conhece bem. "Marx é um velho subsolo filosófico que a todos nos ilumina, mesmo a liberais como eu e nada tem a ver com as vulgatas neomarxianas do leninismo, do maoísmo. Até o velho Karl se insurgia contra as ideologias de conserva, dizendo que não era marxista. Na prática, a teoria é outra, porque, sobretudo em Estados da nossa dimensão, a maioria dos factores de poder já não são nacionais, e os governos são meras pilotagens automáticas que só podem garantir as independências nacionais se conseguirem gerir dependências e interdependências. Pena é que não reparem na velha lição segundo a qual os problemas económicos só podem resolver-se com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Isto é, só se conseguirem repolitizar os velhos Estados, libertando-se das adiposas gorduras de aparelhos que foram feitos para dar resposta à velha questão social, mas que não admitem que a nova questão social implica a meritocracia e a consequente avaliação das competências, segundo o critério da justiça e não da inveja igualitária."
[...]
Notas Macro:
Obs: Parecem-me oportunos os comentários supra, tanto que nesta fase de globalização competitiva em que nos situamos, os efeitos sociais são mais complexos, porque interiores às sociedades, e a cada uma delas de forma diferenciada, estabelecendo aí diferenciações assentes nas capacidades competitivas: conhecimento, flexibilidade, polivalência, capacidade de realizar objectivos estratégicos por efeito de convergência de funções.
Desta feita, estabelece-se, assim, uma distinção radical e explosiva entre os incluídos e os excluídos do sistema: aqueles sustenam as condições de viabilidade do sistema, os excluídos, ao invés, são considerados os factores de inviabilidade, elementos descartáveis duma sociedade. Talvez a luta de classes emanasse deste grupo crescente de pessoas, mas, na realidade, esta "gente" já não se organiza como no passado, hoje estas dinâmicas são mais difusas, e o Joaquim Aguiar explica bem essa questão (acima) ao referir que já não há centros únicos de acumulação de capital, como outrora se via com a classe capitalista. Ou seja, ela existe hoje - entre a banca - mas está tão difusa que não se lhe consegue dar termo de resposta ao estilo do séc. XIX e XX.
Portanto, não há luta de classes. Aliás, os sindicatos hoje para sobrevuver têm de fazer uma marcação cerrada à agenda do PM para o insultar nessas visitas oficiais, o que revela bem a dificuldade de os sindicatos, actores tradicionais nessa luta de classes, estruturarem a conflitualidade contra o Estado e os "ricos".
Diria mais, se me é permitido dialogar com estes dois reputados analistas e pensadores, a gravidade da questão reside no facto de incluídos e excluídos coabitarem nos mesmos espaços, nos mesmos territórios nacionais, sob a mesma orientação política e, por vezes, no mesmo prédio - mas em andares diferentes.
Ou seja, e por isso evoquei essa constelação da globalização (que um "amigo" - me critica, embora eu saiba que ele de globalização pouco sabe ou sabe um saber de lombada e de telejornal e de fábrica falida que serve depois para alimentar uns textositos de editoriais macacos para consumo interno) - que, no quadro desta discussão se amplia v.q., a mundialização (segundo a escola francesa) gera necessáriamente a fragmentação onde as divisões sociais coexistem na vertical, como..., lá está, se fossem diversos andares que se sobrepõem no mesmo território.
Siginificará isto uma luta de classes? Não no sentido tradicional, até porque hoje somos todos "ricos" e "pobres" ao mesmo tempo: ricos porque temos acesso fácil e rápido ao crédito; pobres porque não temos nada seguro no tempo, é tudo precário, como os casamentos. Nesta linha de entendimento da história cabe dizer, talvez, que se trata de ajustamentos entre essas divisões de grupos sociais coexistentes, que são diferenciados entre si - de forma radical - pelo máquina triturante do mercado - que reclama maior eficácia das instituições de regulação política, i.é, do Estado.
Mas há aqui um problema que já não é conjuntural, mas sim estrutural: o Estado já não manda na economia, neste sentido não vivemos uma luta de classes no sentido marxista, mas sim uma luta da Economia contra a Política: esta vive nostálgica por querer comandar uma área que dantes administrava cirúrgicamente (preços, produção, etc); a Economia vive ensimesmada pensando que agora é a rainha que tudo pode, manda e controla.
E não sendo o Estado o administrador desses novos equilíbrios sociais, quem os garantirá?! Quem, de facto, suprime esse gerador de desigualdades individuais que se multiplicam diáriamente no mercado de trabalho entre velhos e novos, qualificados e menos qualificados, incluídos e excluídos?
Eis o grande problema do nosso tempo: a igualdade de oportunidades, a riqueza, a modernização e o desenvolvimento das sociedades já não dependem das entidades políticas que hoje já pouco ou nada regulam, ainda que seja essa a esperança e a expectactiva dos info-excluídos.
O Estado é como aqueles leões em fim de ciclo, que já não patrulham o território, já não assumem a segurança da prol, já não tratam das fêmeas.. Apenas comem e deitam-se à sombra à espera da morte - executada por outro leão mais novo que lhe tomará o lugar e a função, e depois o ciclo repete-se na roda dentada da vida (animal).
Hoje as lutas são outras, mas não deixam de entalar os homens... (e os animais)!!!