Racionalidade - por António Vitorino -
RACIONALIDADE
António Vitorino
jurista
Esta semana o Observatório das Migrações divulgou um estudo que conclui que só um em cada cinco imigrantes em Portugal desempenha funções que correspondem às suas qualificações. De forma pertinente o estudo assinala o que este número revela de desaproveitamento em Portugal do capital humano que representam os imigrantes. Para esta realidade contribuiu significativamente o afluxo de imigrantes oriundos de países do Leste europeu e mais recentemente de brasileiros.
Manda a lógica que se reconheça que uma gestão racional dos fluxos migratórios deveria permitir que estas situações não se verificassem numa dimensão tão impressiva. O que comporta dois corolários essenciais.
Por um lado, trata-se de reconhecer que a autorização para entrada e permanência dos imigrantes no nosso território deveria incluir, à partida, uma metodologia de aferição das qualificações dos imigrantes, desejavelmente nos próprios países de origem. Deste modo estaríamos a avaliar com maior rigor a adequação dos candidatos à imigração aos postos de trabalho que pretendem vir a ocupar entre nós.
Por outro lado, o reconhecimento das qualificações académicas e profissionais obtidas em países terceiros constitui um processo complexo, para o qual as instâncias administrativas portuguesas nem sempre estão preparadas, atentas até a diversidade dos países de origem dos imigrantes e as dificuldades de certificação dessas qualificações tanto do ponto de vista formal como de substância. A questão colocada por este estudo é, pois, complexa.
Mostram também os estudos sobre os mais recentes fluxos migratórios que, contrariamente a muitas ideias feitas, são cada vez mais as pessoas de classes médias e com formação de base que imigram para os países europeus. A imagem da "imigração de desesperados" está, pois, longe de esgotar a realidade dos actuais fluxos migratórios.
Esses imigrantes buscam uma vida melhor nos países de destino e a sua motivação leva-os a aceitar ocupar postos de trabalho e desempenhar funções ou tarefas inferiores às que poderiam aspirar em função das suas qualificações académicas ou profissionais. Os desníveis económicos e sociais explicam que, mesmo nas tarefas mais inferiores da escala social nos países europeus, essas pessoas auferirão rendimentos superiores aos que usufruíam nos seus países de origem em posições mais adequadas às suas efectivas qualificações.
Nesse aspecto a assumpção de funções de menor exigência é o preço que estão dispostos a pagar para terem uma oportunidade de imigrar. Daí que, no seu interesse, muitas vezes nem declarem com exactidão as habilitações e qualificações de que são titulares, receando que a sobre-qualificação lhes tolha a possibilidade de imigrarem.
Mas este fenómeno também é conhecido entre nós. Quantos desempregados aceitam um posto de trabalho manifestamente abaixo das suas qualificações e potencialidades para apenas poderem ter a garantia de um ganha-pão para eles e suas famílias? Acresce que as autorizações para imigrar são definidas em função das necessidades de mão-de-obra dos países de destino. Ora, uma grande parte das ofertas de trabalho para candidatos à imigração diz respeito a postos de trabalho em que se exigem poucas qualificações. É isso que explica que, havendo falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde em Portugal, a chegada de médicos espanhóis se tenha ficado a dever sobretudo à sua iniciativa pessoal (em função da situação existente no mercado de trabalho no país vizinho) e os 120 médicos imigrantes (sobretudo do Leste europeu) que a Fundação Gulbenkian apoiou há mais de dois anos e que hoje exercem medicina em Portugal tenham imigrado para o nosso país para trabalhar na construção civil ou na restauração...
O "final feliz" deste caso dos médicos pode (e deve) suceder com outras profissões, onde o mercado de trabalho português se mostra deficitário, mas não constitui em si mesmo uma receita universal. Daí a importância do estudo em causa: conhecer a realidade da qualificação dos imigrantes que estão já entre nós constitui um pressuposto de uma política de imigração racional.
PS: António Vitorino anda em busca do perfil objectivo (e oculto) do CV das pessoas que escolhem Portugal para ganhar a vida, talvez assim os desajustamentos no mercado de trabalho fossem menores. Esta medotodologia prenuncia, por outro lado, um acertar de baterias para as questões sociais no nosso próprio País e entre nacionais, pois é no desemprego, na falta de investimento de qualidade que o sustente, e na crise de vocações de inúmeras profissões junto dos respectivos mercados de trabalho, que reside boa parte dos constrangimentos da economia nacional que dá gaz aos sindicatos. Pergunto-me se nas décadas de 30, 40, 50 e 60 do séc. XX o Brasil tivesse um "escriturário-mor" que aferisse as qualificações dos portugueses emigrantes não teríamos sido os calceteiros, os donos de padarias, os motoristas que, bem ou mal, acabamos por ser naquele imenso País-continente. Uma coisa é certa: o governo tem mais um ano e meio para elaborar um Plano Nacional de Emprego e pô-lo em prática, um plano que terá de ter mecanismos ageis e com íntima ligação às empresas, às universidades e à sociedade em geral. Um plano que, para ser eficaz, terá de ter incentivos e vantagens para valorizar e premiar os melhores, o que também dependerá da qualidade do investimento que se conseguir atrair para o rectângulo. Veremos se o governo dá sequência a esta ideia e preocupação a que AV aqui demonstrou atinente aos imigrantes no burgo mas que, por ironia do destino e maldad das economias turbulentas, também se nos aplica por maioria de razão. Como se fossemos estrangeiros na nossa própria terra. Com efeito, a história das economias é cruel, bárbara mesmo: pergunto-me quantas pessoas em Portugal, já na casa dos 30, 40 e 50 - com imensa experiência socioprofissional não são hoje excluídos do mercado de trabalho apenas com base nesse estúpido critério da idade. O governo, as empresas, todos, deveriam ter a ciência de eliminar este preconceito dos critérios de avaliação e de integração de quadros nas empresas, pois essas pessoas, por terem mais "mundo", poderiam tornar-se mais produtivas na vida das organizações - que hoje as rejeitam com base no argumento mais estúpido do mundo:a idade. Uma "idade" que deveria revelar-se um factor competitivo na vida das empresas, e não um suposto elemento de bloqueio. Dito isto, tenho esperança que o governo tome nota desta reflexão-advertência de AV, e que esse mesmo governo de Portugal - pela mão de Vieira da Silva possa configurar esse Plano Nacional de Emprego ajustando nele um dispositivo vidando eliminar esse preconceito, nem que para isso se tenha de prometer às empresas portuguesas uma "cenoura" que valorize o peso social dessas "bibliotecas ambulantes" que são os homens e as mulheres que caíram nessa armadilha da vida, cujo único crime que cometeram, em muitos casos, é o de terem habilitações a mais. Até dá vontade de dizer que o mundo anda todo de pernas para o ar, e se calhar é por essa razão que um empresário é levado a excluir um quadro valioso para os seus quadros com base no critério da idade. E o mais curioso ainda é que, também em inúmeros casos, esse empresário não foi além da 4ª classe, fala e arrota ao mesmo tempo e ainda pensa que estamos no tempo da CEE...
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