terça-feira

Desafios que desequilibram a gravidade

DESAFIOS QUE DESEQUILIBRAM A GRAVIDADE - por Francisco Sarsfield Cabral -
«A baixa do dólar não é nem inesperada nem indesejável
O euro chegou a um dólar e 44 cêntimos - quase o dobro da cotação de há seis anos. No princípio deste mês o dólar canadiano passou a valer mais do que o dos Estados Unidos, facto insólito, notado até no excelente telejornal satírico Daily Show, de Ion Stewart, ou seja, é o dólar americano que está em baixa.
Será bom? O barril de petróleo é pago em dólares, atenuando assim, para os países do euro, o seu brutal encarecimento (já passou os 92 dólares). Mas, por outro lado, um dólar barato é mau para a competitividade das exportações portuguesas, incluindo de algumas que se destinam à zona euro. É que, aí, parte delas concorre também com artigos (têxteis asiáticos, por exemplo) cujo preço é expresso em dólares.
Acresce que certas moedas asiáticas não se têm valorizado grande coisa face ao dólar. Desde há dois anos a moeda chinesa apenas subiu 8 por cento em relação ao dólar, enquanto o euro se valorizou cerca de 18 por cento. As autoridades americanas, aflitas com o enorme défice nas trocas comerciais dos EUA com a China, tentaram que Pequim deixasse subir a cotação do yuan. Em vão, ou quase, apesar do grande excedente comercial da China. E agora idênticos esforços desenvolvidos pela União Europeia parecem condenados ao fracasso.
Os chineses mantêm artificialmente baixa a cotação da sua moeda para não perderem competitividade nas exportações. São estas que garantem à economia chinesa um fenomenal crescimento - indispensável para o Partido Comunista continuar a dominar o país. O problema é político. A China consegue travar a valorização da sua moeda face ao dólar comprando e acumulando quantidades imensas de títulos americanos. Títulos que, entretanto, se desvalorizam com a queda do dólar. Ora, o dólar irá descer ainda mais. Até onde aguentarão os chineses prejuízos nas suas reservas, para favorecerem as exportações?
Ao desequilíbrio externo americano correspondem, naturalmente, grandes excedentes noutros países, como a China e os produtores de petróleo do Médio Oriente. Por isso o mundo ganharia se as autoridades chinesas começassem também a corrigir a subvalorização da sua moeda. É verdade que, de 2000 para cá, os salários na China duplicaram. Mas os ganhos de produtividade na economia chinesa quase quadruplicaram. Resultado: o custo do trabalho por unidade produzida na China baixou 30 por cento nos últimos seis anos. E a China tem, na sua população rural, uma enorme reserva de mão-de-obra barata. Aliás, a China só teria vantagens - até do ponto de vista da paz social no país - em assentar o seu crescimento não apenas nas exportações, mas, também e cada vez mais, no consumo interno.
Se faz sentido pressionar a China para flexibilizar o câmbio da sua moeda, já faz menos o clamor europeu para que Washington trave a descida do dólar. A tendência para a baixa do dólar reflecte o desequilíbrio das contas externas americanas, que põe em risco a estabilidade financeira internacional. É um desequilíbrio "que desafia a lei da gravidade", como alguém disse. Por isso a baixa do dólar não é nem inesperada nem indesejável. Importa é que seja gradual e calma.
As exportações americanas já espevitaram com a descida do dólar, mas não chega. O desequilíbrio externo dos EUA é financiado do exterior com dinheiro aplicado em acções, obrigações e investimento directo. Ora, muitos investidores estrangeiros estão cada vez mais relutantes em comprar títulos em dólares, pois é inevitável que eles se desvalorizem. Em Agosto, os investidores internacionais venderam activos norte-americanos no valor inédito de quase 70 mil milhões de dólares.
Pode acontecer, então, o desastre que muitos receiam há anos: uma corrida à venda de dólares. Nessa altura seria inevitável uma recessão nos EUA e provavelmente também na Europa. Felizmente, tal ainda não aconteceu: a correcção do câmbio do dólar tem sido progressiva.
Entretanto, muitos exportadores europeus, a começar pelos portugueses, vêem a sua vida dificultada por factores cambiais. Mas a Alemanha conseguiu recuperar o dinamismo das suas exportações com o euro a subir. O câmbio conta, mas há factores mais importantes para a conquista da competitividade. É nesses que a zona euro, em geral, e Portugal, em particular, devem concentrar esforços, em vez de clamarem por uma irracional travagem na queda do dólar.»
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Público assin.]
Obs: Divulgue-se.