Afastar as pessoas da integração europeia - por Francisco Sarsfield Cabral -
Afastar as pessoas da integração europeia [in Público, 22 de Out. 2007]
É bom para Portugal ter concluído, com êxito, as difíceis negociações para pôr de acordo 27 países quanto ao novo tratado europeu. E é sobretudo bom para a União Europeia ter finalmente posto fim (mas ainda faltam as ratificações...) a mais de dez anos de impasse na reforma institucional.
Esta reforma decorre do alargamento: não se governa uma UE de 27 países como se governava a CEE com menos de metade. Só que a União, que exigiu (e bem) duras reformas aos países de Leste para aderirem, não fez a tempo a reforma das suas próprias instituições. A partir de agora, porém, deixará de estar absorvida com a querela institucional.
Não que o Tratado seja perfeito, longe disso. As cláusulas conseguidas pelo Reino Unido e pela Polónia enfraquecem o documento. E a criação de um Presidente da UE poderá revelar-se uma fonte de conflitos com o Presidente da Comissão.
Mas o critério da dupla maioria, de Estados membros e de população, nas decisões do Conselho é sensato e democrático. Como também é positivo os parlamentos nacionais passarem a envolver-se um pouco mais no processo comunitário de decisão.
Infelizmente, este passo em frente vem associado a uma atitude inquietante. Se é bom haver tratado, é péssima a maneira como ele vai ser “vendido” às opiniões públicas dos vários países. A palavra de ordem é evitar referendos (excepto na Irlanda, onde terá de haver por imposição constitucional). A França e a Holanda não admitem referendar o novo tratado, porque o rejeitaram antes. E um referendo no Reino Unido daria provavelmente um “não”, inviabilizando o Tratado de Lisboa.
Não considero o referendo a única, ou mesmo a melhor, forma de expressão da vontade democrática das pessoas. Sobretudo para questões complexas, como a aprovação de tratados, a democracia representativa é insubstituível. O problema é que, neste caso, a fuga ao referendo faz parte de um processo de enganar os cidadãos.
Tomando-nos por parvos, tenta-se passar a ideia de que o texto aprovado em Lisboa pouco tem a ver com a defunta e impropriamente designada constituição. Nome nada inocente, pois queria dar a ideia de que nasciam os Estados Unidos da Europa; por isso mesmo, o nome foi fatal para o documento. Agora Giscard d’Estaing considera que o texto de Lisboa contém 95 por cento do que estava na “constituição”. Mas ainda que seja um pouco menos, é óbvio que o essencial passou para o Tratado.
Também foi dito que só se justificaria um referendo caso houvesse implicações quanto a transferências de soberania. Ora aí não é possível ter dúvidas. Há um novo regime para tomar decisões no Conselho por maioria qualificada. Aumenta o número de matérias (justiça, polícias, imigração, asilo, energia, política externa, etc.) em relação às quais já não se exige a unanimidade. Se isto não toca na soberania, não sei o que tocará.
Ainda se os políticos promovessem um debate político sério sobre a reforma do Tratado da UE... Mas é o contrário que vemos. Em Portugal, os temas europeus estão praticamente banidos das discussões político-partidárias. Na integração europeia, os políticos enxotam os cidadãos.
A recusa de referendar o tratado em Portugal, com o beneplácito do PSD de Menezes, será particularmente chocante porque contraria promessas feitas pelo PS. Lê-se no Programa do actual executivo: “O Governo entende que é necessário reforçar a legitimação democrática do processo de construção europeia, pelo que defende que a aprovação e ratificação do Tratado deva ser precedida de referendo popular”. Nem mais.
Em Portugal nunca se referendou o projecto europeu. Enquanto europeísta, lamento o facto, que dá argumentos aos eurocépticos. Pior: o receio da opinião dos cidadãos por parte dos políticos europeus leva ao presente processo de dissimulação e engano.
Ou seja, os políticos ainda não perceberam o maior problema actual da construção europeia: o crescente afastamento das opiniões públicas face à integração. A progressiva abstenção nas eleições directas para o Parlamento Europeu e os dados do Eurobarómetro são indícios claros do desencanto.
O divórcio entre as opiniões públicas e o projecto europeu irá agravar-se com os políticos a enganarem as pessoas. Construir a Europa à revelia dos cidadãos é a via para o desastre. Espanta como isto ainda não foi entendido pelos actuais dirigentes europeus.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: Mais uma proficiente reflexão (histórica) do Francisco sobre a Europa que temos. O Francisco, no fundo, depois de andar a ser "tomado por parvo" durantes estas últimas décadas (como os tugas em geral, cada vez mais distantes do pólo de decisão europeu), agora decidiu não querer mais ser tomada como tal. Faz bem. Mas a haver referendo ele já deveria ter ocorrido, e não agora nesta fase de desbloqueio institucional a 27 e numa fase de quase recessão económica mundial onde os desafios impostos pela globalização competitiva aconselham celereridade no processo de tomada de decisões a fim de fazer da Europa um gigante económico e um gigante político, vectores e dimensões de que a Europa hoje carece, com tremendos efeitos sociais, de que a pobreza, o desemprego e a exclusão social são hoje as notas dominantes no espaço intrasocietal. Na forma, concordamos aqui com este artigo, mas desejaria que a conclusão a que o Francisco chega pudesse ser esmiuçada, fundamentada e explicada pelos senhores deputados da Nação, i.é, pelos parlamentares dado o elevado carácter especioso tecno-jurídico deste "intragável" articulado como o António Vitorino o cunhou nas suas Notas Soltas.
Nesta conformidade, sou de opinião que o referendo não deveria ter lugar na sociedade, mas a sua discussão não deveria deixar de se fazer em sede parlamentar - co-extensivo à sociedade. Seria, em rigor, uma oportunidade para assegurar duas coisas: 1) a utilidade dos deputados da Nação; 2) e uma discussão técnica mas, ao mesmo tempo, mais simplificada sobre as alterações acolhidas no Tratado de Lisboa e que não estão ao alcance dos cidadãos (nem sequer de alguns juristas). Talvez assim, como receia o Francisco, a Europa das elites que decide não nos (continuassem) a "comer por parvos..."
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