sexta-feira

DEZ ANOS DE INÉRCIA - por António Vitorino -

DEZ ANOS DE INÉRCIA António Vitorino
jurista
Decerto que os acontecimentos que ocorreram nestas duas últimas semanas na Câmara Municipal de Lisboa terão provocado alguma perplexidade nos observadores.
O ponto de partida para a sua compreensão é de natureza política e tem a ver com o impasse na definição de um rumo para a câmara a que acresceu o efeito na composição do executivo camarário de uma investigação criminal.
Verificada a impossibilidade de funcionamento da câmara nas actuais circunstâncias, tal como concluiu o líder do PSD, desencadeou-se o processo de convocação de eleições intercalares. E são eleições intercalares porque elas visam apenas completar o mandato agora interrompido e não iniciar um novo ciclo de quatro anos.
O método seguido para abrir a porta às eleições é o único que a lei permite: provocar a falta de quórum de funcionamento, através de um sistema de "renúncias em cascata", de modo a justificar a devolução da palavra aos eleitores.
Convenhamos que o método não prima pela elegância nem pela transparência, levando à subalternização da natureza pessoal do mandato dos autarcas.
Contudo, a porta de saída assim encontrada tem pelo menos o mérito de chamar a atenção para uma vulnerabilidade do sistema de governo das autarquias vigente entre nós. Uma crise política grave impõe o recurso a eleições intercalares através do expediente administrativo da falta de quórum de funcionamento! Na resolução da crise, a assembleia municipal é praticamente irrelevante, a ponto de a maioria do PSD nela existente ter decidido não acompanhar o executivo camarário no retorno à decisão soberana dos eleitores.
É verdade que assembleia e câmara são órgãos distintos e eleitos separadamente. Mas esse argumento formal não pode apagar o facto de a força dominante tanto na câmara como na assembleia ter sido sufragada com base no mesmo projecto político e na mesma liderança autárquica: o insucesso desse projecto e dessa liderança na câmara parece assim nada ter a ver com os eleitos sob a mesma bandeira na assembleia municipal...
Esta é uma consequência directa da natureza híbrida do sistema de governo autárquico que vigora entre nós desde 1976. Não se trata de um sistema presidencial, onde o presidente da autarquia fosse eleito directamente pelo voto popular, embora o primeiro candidato da lista mais votada seja presidente eleito nesse pressuposto legal. Mas também não se trata de um sistema parlamentar, onde o executivo camarário resultasse de uma deliberação da assembleia municipal, caso em que uma crise ao nível da câmara sempre poderia e deveria ser, em primeira linha, resolvida com recurso à composição de um novo executivo a partir dessa mesma assembleia.
Na revisão constitucional de 1997 foi decidido flexibilizar as regras da nossa lei fundamental sobre o sistema eleitoral e de governo das câmaras e assembleias municipais, abrindo assim as portas a uma clarificação do modelo de governo autárquico. Passados dez anos, ainda nada se fez neste domínio, em boa parte porque não há um consenso alargado sobre um modelo alternativo.
O impasse quanto a uma reforma deve-se à inércia dos partidos políticos que não gostam de arriscar e preferem manter um sistema cujas grandezas e misérias já conhecem bem e com o qual se habituaram a viver. Em certa medida, a inacção também se explica porque os modelos alternativos de funcionamento nunca foram devidamente explicitados junto da opinião pública em termos de vantagens que poderiam comportar não para as máquinas partidárias mas sim para a eficiência do funcionamento das próprias câmaras ao serviço dos interesses dos seus munícipes.
A título de exemplo, refira-se que uma evolução no sentido do reforço da componente parlamentar, em que o executivo camarário dimanasse da assembleia municipal, defronta-se com a resistência da generalidade dos autarcas dos diferentes partidos, especialmente quando estão na oposição, para quem estar presente no próprio executivo camarário (mesmo que "na oposição") constitui um objectivo a preservar a todo o custo. Por isso pagamos o preço da menor transparência nas relações entre maioria e oposição e a diluição das alternativas de governação no nosso sistema autárquico...
A clarificação deste ponto no debate político por parte dos vários partidos no preciso momento em que ocorre uma crise grave na principal autarquia do País poderia ser particularmente útil para finalmente dar cumprimento à revisão constitucional de 1997. É que sempre já passaram dez anos...
PS: Divulgue-se