Globalização e egoísmo esclarecido (link) Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia Quando se fala em fundamentalismo, é no fundamentalismo religioso que normalmente se pensa. Mas há outras formas. Pense-se concretamente no fundamentalismo económico. Já em 2001, ano em que recebeu o Prémio Nobel da Economia, J. Stiglitz, referindo-se sobretudo ao caso do Fundo Monetário Internacional, falava de "fundamentalismo neoliberal". Agora, no seu último livro - Making Globalization Work -, faz notar que mais vale ser uma vaca na Europa do que uma pessoa pobre num país em vias de desenvolvimento. Enquanto as vacas europeias recebem em média um subsídio diário de dois dólares, grande parte da Humanidade tem de viver com menos do que isso. A globalização é inevitável. Ela é também ambivalente, isto é, tem ganhadores e perdedores. Ela pode levar ao milagre económico e ao descalabro. Mas, como sublinhou o teólogo Hans Küng, é sobretudo importante perceber que ela é "dirigível". O facto de poder ser orientada significa que a globalização económica exige uma globalização no domínio ético: impõe-se um consenso ético mínimo quanto a valores, atitudes, critérios, um ethos mundial para uma sociedade e uma economia mundiais. É o próprio mercado global que exige um ethos global. Há uma responsabilidade social da economia? M. Friedman, também Prémio Nobel da Economia e um dos economistas mais influentes do século XX, recentemente falecido, respondeu de forma provocante em 1970 no título de um artigo no The New York Times Magazine: "The Social Responsability of Business Is to Increase Its Profits". Não será, porém, necessário perguntar se a responsabilidade moral no domínio económico se identifica com o incremento insaciável do lucro? O que hoje se sabe é que nem o socialismo nem a mão invisível do mercado abriram as portas do paraíso à Humanidade. Assim, à economia de mercado tout court é preciso contrapor a economia de mercado com sentido social e ecológico à escala global. O Homem não se identifica pura e simplesmente com o homo oeconomicus. Não se pode deixar de estar de acordo com Hans Küng: "Nem todas as necessidades dos seres humanos podem ser satisfeitas com o que a economia produz." Em ordem ao bem-estar, a uma sociedade boa, a uma vida feliz, para os seres humanos, incluindo os capitalistas, não basta a economia. Por outro lado, concretamente neste tempo de globalização, ela tem de estar ao serviço das necessidades de todos os seres humanos, não os subordinando implacavelmente à lógica do mercado. Para preservar a dignidade do Homem e relações dignas dele, nem a economia nem a política podem ter o primado, que pertence à dignidade inviolável do ser humano e aos seus direitos inalienáveis. Face à economia, é preciso defender o primado da política, mas, face à economia e à política, saber que o primado tem de ser o da humanidade do Homem, de todos os homens. Continuam a morrer no mundo à fome milhões de seres humanos, o que é intolerável. É um imperativo ético ajudar os países pobres no seu desenvolvimento. Ora, sempre será preferível ajudar no desenvolvimento as pessoas nos seus próprios países a ter de levantar barreiras e muralhas à volta do mundo desenvolvido e assistir à entrada, sem controlo possível, de multidões à procura de uma vida melhor, com todos os efeitos de turbulência inevitável a médio prazo. Em última análise, é o modelo moderno de desenvolvimento, com a sua ideologia do progresso ilimitado, que está na base da crise ecológica e também da injustiça entre o Norte e o Sul. Assim, a construção da casa comum da Humanidade exige uma nova consciência ética (veja-se a ligação entre ethos e oikos, com o significado de casa e habitação, em conexão com ética, economia e ecologia), aliada a uma nova proposta político-cultural global para uma nova ordem económico- -ecológica global. Hoje, atendendo às relações existentes entre os países ricos e os países pobres, à limitação dos recursos e à ameaça ecológica - aumentam as certezas científicas quanto à responsabilidade humana nas mudanças climáticas -, damo-nos pela primeira vez conta de que, face ao perigo em que nos encontramos todos, se impõe que a Humanidade, se quiser ter futuro, se tem de tornar sujeito activo comum da responsabilidade pela vida. Ou a Humanidade como um todo se torna sujeito do seu futuro e da responsabilidade pela vida em geral ou não haverá futuro para ninguém. Em termos simples e cínicos: se não quisermos ser solidários com os países pobres por razões de ética e humanidade, sejamo-lo ao menos por razões de egoísmo esclarecido."
Publicámos este artigo na imprensa em Dez. de 2004. Ele pode ter valor complementar ao artigo de cima, do Pre. Anselmo Borges.
O herói contemporâneo: o sacerdote-economista
Perscrutando a actual paisagem e fauna política lusa confesso não identificar tema de reflexão que me legitime junto do leitor, a quem devo respeito. Ante esse deserto de ideias, factos, valores, planos ou homens com visão em Portugal (e os que existem são silenciados), sou obrigado a visitar o baú da história e biografar, na medida do possível, um homem cuja vida espelha o (meu) modelo do herói contemporâneo: o Pre. Francesco Van Der Hoff. Um sacerdote holandês que prometeu mudar a cotação do café com base no comércio justo junto duma comunidade de agricultores no México. Sob a aparência de um empresário emergiu um missionário que é, hoje, a luz (e o pão) para milhares de famílias que passaram a viver melhor na fronteira de Chiapas.
Mas qual é a motivação de um sacerdote europeu que lia o El País em zarpar rumo ao Pacífico levando apenas um telemóvel e um PC? Doutorado em teologia Hoff também sabe de economia. E foi com essas ferramentas que tem (desde a década de 80 do séc. XX) melhorado as condições de vida da população indígena, na sua maioria produtores de café. A ideia-mestra consistia em dar forma ao comércio justo. Para o efeito, havia que consciencializar (para transformar) a comunidade internacional para o facto de que os países ricos podiam ajudar os países pobres ficando todos a ganhar. Desde que, naturalmente, a base dessa troca fosse garantida por uma remuneração mais justa.
Conquistada a confiança dos camponeses locais – uma vez que Der Hoff passara a viver no meio deles (como fez Agostinho da Silva quando foi para o Brasil) estava percorrido metade do caminho. Um caminho tortuoso, repleto de espinhos que causavam o sofrimento a milhares de índios-agricultores explorados. O sacerdote compreendera que em vez das tradicionais ajudas ao desenvolvimento, disfarçadas de caridade que fizeram carreira ao tempo de Willy Brandt, seria mais eficiente (e mais justo) conseguir duas coisas: 1) fazer com que o Norte remunerasse melhor o preço do café pago aos agricultores; 2) e que estes, em conformidade, cuidassem da sua qualidade. E assim Hoff conseguiu aproximar as posições negociais dos índios do Sul com as posições dos homens de negócios do Norte de molde a encontrar uma remuneração mais justa.
À melhor qualidade do grão castanho seguiu-se a exploração da agricultura biológica. O resultado desse comércio justo viabilizou cooperativas fazendo com que os índios passassem a gozar de crédito junto do mercado. Foi essa alteração qualitativa que permitiu às comunidades locais financiarem os seus próprios projectos de desenvolvimento, dantes impensáveis. E assim nasceram estradas, hospitais e escolas.
Volvidas duas décadas o balanço é francamente positivo. A economia serviu apenas de guia para valorizar pessoas. E através da organização holandesa de comércio justo (Max Havelaar) as bases dessa estrutura alargaram-se substancialmente, com a duplicação dos rendimentos dos índios mexicanos.
Provavelmente, nunca um sacerdote foi tanta vez convidado para participar em fora políticos – na ONU, na Europa onde teve oportunidade de expor as suas teorias económicas que podem integrar um futuro Prémio Nobel da Economia. Eis um exemplo que escapa à rotina dos padrões de avaliação ocidentais; eis a vida de um sacerdote “armado” com as 3 armas do desenvolvimento: o conhecimento, um telemóvel e um portátil. Sempre conectado à rede – este missionário consulta on line as cotações dos preços do café de modo a garantir que os agricultores (semi-letrados) não fiquem penalizados no acesso e gestão da informação.
Este enviado de Deus aproveita os dispositivos da globalização para ajudar os mais pobres. Percebe que as ideias são mais importantes que as armas. As ideias produzem sonhos que transformam a realidade. Rejeita a rota antiglobalizadora que destroi Macdonald’s made in José Bové que não aproveita ninguém. Quando se olha para a fauna política lusa dificilmente se encontra espécie que seja simultaneamente competente e solidário: o filósofo Agostinho da Silva era-o; o sociólogo Acácio Ferreira Catarino também; Hoff, que é um sacerdote-economista e um nobel em potência, é uma luz desse caminho. E quando se espreita a escuridão do governo da nação, o leitor sabe..
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