segunda-feira

Avaliar arte...

Como será avaliar arte, música, a sensibilidade artística e cultural dos criadores!? Sempre me interroguei o que isso significava na prática, apesar de pouca massa crítica dispôr nessa área. Pelo que alguém com formação artística conseguirá ver sempre o que não consigo ver num quadro, o que me deixa cego arte a soit-disant Arte. O Prémio Gulbenkian postado abaixo e a minha curiosidade e estupidez naturais fazem o resto: o que é a arte? questão e tema tão pouco tratado neste espaço que, por regra, trata de análise social e política e doutras promíscuidades tão do gosto dos políticos de palmo e meio que temos na polis.
A questão parece-me pertinente na medida em que vivemos hoje inundados pela incerteza, pela mudança e pela inquietação no arranque deste conturbado III milénio que nos mostra um futuro ainda por textualizar. Daí que se fosse pintor, escultor, actor de teatro, bailarino (aqui penso mais em MMendes a dar passadas de ganso em pleno vôo no D. Maria..) tentaria perceber os conflitos do meu país, as tensões e as divisões sociais que aí temos, o tipo de tecnologia que empregamos no nosso quotidiano. Não obstante as tecnologias já serem muitas, rápidas e limpas nem por isso os nossos destinos ou quadro de possibilidades assume um rumo melhor ou diferente do que seria imaginável. E aqui temos logo um nó-górdio difícil de desfazer: dispomos de tecnologias rápidas e baratas mas a mudança social é lenta e precária. Como inscrever isto numa tela? Como esculpir esta realidade social? Como musicar esta linha de tensão social junto de olhos e ouvidos de terceiros, no fundo o publico consumidor de Arte?
Por outro lado, se fosse artista preocupar-me-ia em saber por que razão são tão diferentes as nossas condições de vida da dos nossos pais e avós. Presumo que compreender isso seria entender como chegámos até aqui, o que implicaria descodificar a nossa própria trajectória social e os comportamentos e as atitudes que tomámos até atingir o ponto em que estamos. Trabalhar esse "ponto", ou milhares de pontos seria o terreno da produção artística.
Depois pintar a forma como as pessoas se cruzam e falam nas ruas das nossas cidades, vilas e aldeias e fazem as suas trocas globais de informação também me seduziria enquanto artista dessa arena do global, onde procuraria que nada me escapasse. Tamanha heresia...
Mas há um problema prévio que decorre da disfunção da nossa própria lente: é que cada um de nós vê o mundo em função das nossas vidas, gostos, razões e interesses, deixando de fora, quase sempre, a tal perspectiva holística que deveria preocupar o verdadeiro artista do global.
Desde logo conheceríamos dificuldades em pintar as ondas que movimentam essas forças históricas e sociais, compreendendo simultaneamente as forças mais profundas pelas quais as nossas vidas individuais ou as nossas experiências sociais interferem ou influem no tecido conjuntivo em que "navegamos".
Ante tudo isto, que é quase nada, concluo que um artista tem de ser, antes de mais um sociólogo, um politólogo, um historiador, alguém atento ao concreto ao mesmo tempo predisposto a interpretar o global - enfim, alguém que consiga coordenar e relacionar interesses e factos aparentemente diferenciados, o que se consegue por recurso à tal imaginação sociológica de que falava C. W. Mills. Julgo que só assim conseguimos libertar-nos das comezinhas circunstâncias em que todos vivemos, vendo as mesmas coisas, dizendo as mesmas tretas, colorindo o mundo pela mesma paleta de cores, etc.
Creio que se conseguirmos abstrair-nos das nossas rotinas pessoais, familiares, profissionais da vida comum do dia-a-dia conseguiremos ver (pintar, esculpir e musicar) o mundo com outras formas e texturas.
Uma provocação de tom artístico: como sabemos o aborto além de estar agora na berra constitui um grave problema social que divide e fractura a sociedade portuguesa. Para o artista a dificuldade começaria logo em saber como representar um quadro, uma escultura pelo Sim e outra pelo Não. O que denuncia bem a dificuldade em ser artista e fazer aceitar os seus trabalhos.
Em face do exposto, seria interessante registar o que as pessoas conseguem ver naquela imagem, incluindo aqui nessas narrativas os testemunhos dos amblíopes e o mais...
O que nela veria Almada?