domingo

Uma entrevista do CM a António Câmara, o homem da Ydreams

UM EXEMPLO A RETER, A SEGUIR E, SE POSSÍVEL, A REPRODUZIR COM DOBRO SUCESSO...
Esta entrevista é uma pedrada no charco de águas estagnadas da nossa Academia, mormente ao nível das Humanidades - em que vivemos ainda na época medieval, com docentes medievais que gerem as universidades como quem faz xi-xi no quintal da sua aldeia. Por vezes até me envergonho de dizer que esse é meio ao qual, de certo modo, também pertenço. Um meio endogâmico e profundamente bajulador que mata cerce qualquer criatividade ou maneira de pensar diferente.
Nota prévia: Esta entrevista que o CM fez a António Câmara deve ser lida e meditada por várias razões. É uma entrevista sóbria, inteligente, com common sense e humildade. Tem, depois, mundo, i.é, comporta uma cosmovisão interessante, debitando uma dimensão teórica e prática de quem só podia ser ao mesmo tempo um investigador e um empresário, coisa rara neste País. Reflecte ainda o que de melhor a globalização competitiva tem: as forças múltiplas da modernidade, o ideário da esperança e do saber-fazer, a intuição e a inteligência suave de quem sabe para onde vai e donde veio. Ao ler-se esta entrevista ao homem da Y-dreams - fica-se a perceber que a globalização não é um alguidar vazio que só beneficia ricos e poderosos, mas que pode ser uma alavanca que valoriza pessoas, cidades, regiões, países. A globalização vista pela lupa da Y-dreams reflecte uma globalização feliz, de rosto humano, altamente criativa e plena de inúmeras formas que entram em nossas casas e nos transformam a vida. Nesta perspectiva a Y-dreams - é um motor da globalização positiva que está radicalmente a alterar as nossas vidas, mudando também a vida das sociedades, das instituições, das empresas que antigamente as sustentavam num mercado que hoje já não existe. É por isso que no espaço de 24h. sou forçado a dar os parabéns ao António Câmara - que feliz me deixou quando percebi que o Macroscópio era um espaço que já conhecia. Parabéns, again...
Entrevista CM: António Câmara
Universidades têm de aprender com desporto
António Câmara, professor da Universidade Nova e fundador da Ydreams, empresa que esteve esta semana em foco na visita do primeiro-ministro à China ao apresentar o jogo que tem como protagonista Cristiano Ronaldo. Com o mercado global como horizonte, este empresário e académico manifesta-se preocupado com o mau ensino da língua portuguesa e com a falta de entendimento entre as universidades e o mundo empresarial. Mas a vivência dos Estados Unidos, onde estudou e se pós-doutorou, deu-lhe uma lição fundamental: tudo é possível e mesmo uma pessoa normal pode ser bem-sucedida.
Correio da Manhã
– É um exemplo de como um professor universitário se pode transformar num empresário bem sucedido. Uma união rara em Portugal.
O que é que tem falhado na relação entre as universidades e as empresas?António Câmara – Acho que isso acontece por várias razões. Uma delas é porque a maior parte da investigação feita em Portugal não tem nenhum interesse para o mundo empresarial. E isso acontece porque a orientação dos professores universitários é publicar artigos nas revistas internacionais, que são avaliados pelos seus pares. E todos os seus pares pensam da mesma forma. Há uma discrepância enorme entre o que é o mundo académico e o empresarial. E não é porque não seja, em alguns casos, investigação aplicada. É porque não é boa.
– O facto de ter estudado nos EUA ajudou-o a ter outra visão do mundo, nomeadamente a de conciliar a academia com o mundo empresarial? – Depois de termos estado nos EUA e vermos pessoas perfeitamente normais serem bem sucedidas, nós achamos que tudo é possível. Em Portugal, ao contrário, há esta atitude depressiva e incrivelmente exigente: esta atitude de que nada é possível.
– Então provavelmente não teria fundado a sua empresa tecnológica, a Ydreams, se não tivesse estudado lá. – É difícil responder mas provavelmente não. Ter estudado nos EUA teve uma influência enorme em mim e também nos meus estudantes. Cerca de 30 pessoa da Ydreams estudaram lá. Há uma enorme influência americana. E não só em termos de conhecimento científico e tecnológico mas também de atitude perante o mundo.
– Mas foi em Portugal que criou a empresa. Deparou-se com constrangimentos, como o Código Laboral?– Nós não temos problemas. Mas acredito que outras indústrias os possam ter. A nossa dificuldade é contratar boas pessoas. Esse é o nosso entrave, não é a legislação laboral. Se criarmos mais 50 empresas nos próximos anos e cada uma crescer até 100 empregados, vamos precisar contratar cinco mil engenheiros e não vamos conseguir. E esse é o grande constrangimento.
– Outro dos problemas com que se debatem as empresas é o atraso nos pagamentos. Vocês têm esse problema?– Nós passámos quatro anos com esse problema. É uma experiência duríssima. Muito difícil mesmo, pura e simplesmente devido a atrasos nos pagamentos. Essa é uma das razões fundamentais que nos levou a ter outra estratégia. Em primeiro lugar, ir buscar investimento, depois criar produtos e ir para o mercado global. Nós hoje estamos muito felizes a trabalhar no Reino Unido, que paga a 15 dias. Na Holanda o pagamento é quase imediato. O prazo de pagamento é um dos problemas estruturais do País.
– Daí a procura dos mercados externos, da globalização... vocês estão com uma série de projectos internacionais, certo?– Temos um grande projecto para o Metro de Xangai, fomos escolhidos por Madrid para uma feira de imobiliário em Cannes, para fazer a parte interactiva.
– E a entrada em Bolsa? Estão a pensar nisso? – Sim. Estamos a preparar a entrada, que em princípio só acontecerá em 2008.
– Acompanhou o presidente Cavaco Silva à Índia e uma pessoa da Ydreans também se deslocou à China. O que pensa destas missões?– Quando estamos numa missão destas temos uma credibilidade e uma visibilidade completamente diferente. Nós viemos em todos os jornais indianos e, nesse âmbito, fomos contactados por uma empresa muito importante da área da animação. Também foi uma visita com o Presidente Jorge Sampaio que nos levou a criar uma empresa na China, que começa agora a dar frutos. As despesas correm por nós mas achamos muito úteis. Sobretudo nesses países.
É também professor, ainda que do Ensino Universitário. O que pensa dos programas do Ensino Secundário? – A disciplina mais mal ensinada em Portugal, com os piores programas, é língua portuguesa. E a língua portuguesa, mais do que a matemática, é o factor mais condicionante em tudo o resto. Usamos a matemática cinco por cento do tempo, mesmo nós na engenharia, e trabalhamos com a língua 95 por cento do tempo. O ensino do português, algo que é verdadeiramente fundamental, como ler, escrever, raciocinar, é feito de uma forma muito pouco intensiva.
– Em que sentido?– O meu filho esteve a estudar nos EUA e eu comparei os programas. A diferença é atroz. Eles têm listas de leituras para os estudantes do Ensino Secundário e na escola onde o meu filho andou todos os miúdos aos 12 anos tinham de escrever um livro.
– E outros programas?– Nos programas de matemática e de física a diferença não é tão dramática mas houve uma regressão relativamente ao meu tempo. Hoje em dia é pior do que no meu tempo. É triste esta regressão. Há excepções. Em biologia, também, a diferença entre os programas lá fora e os de cá é abissal. Acho que a situação do Ensino Secundário é preocupante. Mas a língua é o caso mais grave. Tudo o resto é recuperável, mais tarde, na universidade.
E o Ensino Superior? – Também tem de ser mudado radicalmente. Nós ainda estamos a ensinar como nos tempos medievais, apesar de haver excepções. O que se passa é que o sistema de ensino é baseado num modelo de infecção. Os alunos têm as aulas, os testes e portanto são infectados nas aulas e os testes testam a infecção. O modelo das melhores escolas do Mundo é de imersão. Os alunos fazem trabalhos todos os dias, têm projectos, são acompanhados, ou seja, estão imersos na cadeira. Têm desafios. Curiosamente, onde temos as melhores escolas é no desporto.
– Escolas desportivas?– Sim. Em termos de qualidade de escolas não há comparação nenhuma com a escola de futebol do Sporting, de basquetebol do Barreirense, de natação do Algés e vários outros clubes do País. Nessas escolas ensina-se os fundamentos, estimula-se a paixão, tenta-se que os estudantes sejam o melhor possíveis. E portanto os resultados vêem-se.
Está a dizer que as universidades podiam aprender com as escolas desportivas?– As universidades e os liceus. Teriam a aprender imenso. A performance no desporto comparada com a da economia e académica não tem comparação. É outro mundo. E é porque são muito melhores.
– Como é que saem então os alunos das universidades? – Apesar de tudo os licenciados das melhores universidades portuguesas têm uma qualidade semelhante à dos colegas europeus. O problema é que durante anos as universidade formavam pessoas para serem empregadas. As melhores universidades, como o MIT (Massachusetts Institute of Technology), prepararam as pessoas para serem líderes. Preparam-nos para serem empreendedores. O que falta nas universidades portuguesas é formação para que as pessoas sejam autónomas, independentes e para que estejam preparadas para criar um emprego próprio.
"O NOSSO MODELO DOS BAIXOS SALÁRIOS TEM OS DIAS CONTADOS
"CM – Ganhou o Prémio Pessoa, que tem distinguido apenas artistas e investigadores.
Como vê a atribuição do prémio a um empresário?
António Câmara – Acho que o júri quis dar um sinal de que a economia do conhecimento tem uma importância crescente e de entre as pessoas desta área foram muito simpáticos em me escolher.
– É também um sinal de que o País está a mudar?– O que está a acontecer é que as pessoas concluíram que o nosso modelo económico tradicional, baseado em baixos salários, tem os dias contados. E portanto que é necessário apostar noutras frentes e esta é uma delas em que naturalmente vamos ter de competir.
– Como soube do prémio?– O dr. Francisco Balsemão ligou-me e disse-me que tinha o prazer de me comunicar que tinha ganho o prémio Pessoa. Foi uma surpresa total. Naturalmente, fiquei muito contente.
E a quem é que telefonou a seguir a dizer que tinha ganho?– Disse à minha família. Ele pediu-me sigilo e eu não comuniquei nada a ninguém. Mas todos (a esposa e os filhos) ficaram surpreendidos.
O que vai fazer com os cinquenta mil euros? – Em princípio vou dar uma parte, mas ainda não está decidido. Nós estamos a definir uma política para a área de formação e da investigação.
"AGRADEÇO AO RONALDO TER ESCOLHIDO A YDREAMS"CM – A Ydreams criou um jogo para telemóvel com o Cristiano Ronaldo.
Como é que se lembraram disso?
António Câmara – Nós achamos que uma indústria como a nossa tem de ter marcas e achámos que não havia melhor marca, neste momento, do que o Cristiano Ronaldo.
- Onde é que vão vender o jogo?– Vamos para 50 países, 200 operadoras. É talvez o primeiro produto verdadeiramente de massa, global e tecnológico feito com uma marca portuguesa por uma empresa nacional.
– E o Ronaldo, gostou da ideia?– A receptividade foi total. Quero até agradecer ao Cristiano Ronaldo por ter escolhido uma empresa portuguesa. Podia ter escolhido qualquer outra, ele foi abordado por muitas das grandes empresas de jogos.
– Como é que o adaptaram para tantos aparelhos diferentes?– Nós desenvolvemos aqui uma plataforma e uma empresa indiana adaptou-o a todos os telemóveis.
PERFIL
- António Câmara, de 52 anos, é actualmente professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e chief executive officer (CEO) da Ydreams, que fundou em Junho de 2000. Trata-se de uma empresa que se dedica, entre outras áreas, ao desenvolvimento de jogos para telemóveis Entre os seus clientes encontram-se a Nokia, Vodafone e Adidas e terminou 2006 com 150 trabalhadores e 15 milhões de facturação. Casado e com dois filhos - e um gato chamado ‘Simba’ - adora basquetebol e ténis. Formou-se no Instituto Superior Técnico, mas foi nos Estados Unidos que fez o mestrado e o doutoramento, tendo concluído o pós-doutoramento no MIT. Regressou a Portugal, com saudades, como professor da Universidade Nova porque acreditou no potencial nacional.
Raquel Oliveira
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