domingo

A mundialização do perigo, do risco e da ameaça: o anti-mundo

O FENÓMENO PAULO CASACA NO YOUTUBE

Reportámos ontem aqui o que passou no Youtube: um video em que um eurodeputado dançava numa festa com um grupo terrorista que entretanto já tinha deixado de o ser pela UE. A coisa saltou para o Rizoma e foi conhecida mundialmente. Com o medo inerente à condição humana, o mesmo eurodeputado que se ufanava na dita festa - veio à noite às antenas dos media dizer que temia pela própria vida, e foi até mais longe na exteriorização desse receio: temia que viesse a ter o mesmo destino de Saddam.

Sem o querer ou talvez inconscientemente, comparou-se ao carniceiro de Bagdad, e isto só se explica por um medo desmesurado que entretanto se apoderou dele, e não por Saddam ser um modelo democrático a seguir, ou sequer estar preocupado com a democratização do Iraque ou até, como aquele eurodeputado pretendeu dizer, com a própria democracia no Irão, país vizinho (inimigo).

Entretanto, Teerão, que não brinca em serviço, terá mandado um peão de Braga colocar o video no Youtube, coisa que até um puto de 14 anos pode fazer, à semelhança do que vimos a semana passada quando um jovem em Elvas se dedicava à danificação de veículos com outro a filmar.
Tudo isto, de facto, deixa-nos a pensar: muitos de nós crescemos num mundo onde a geografia importava e a proximidade era lei. Se nascessemos em Lisboa por aí casávamos e tínhamos os filhos e trabalhávamos. Por aí também morríamos. Hoje, como demonstrou o medo do eurodeputado portuguÊs, já não sabemos onde vamos morrer, nem às mãos de quem e por que causa. A nossa antiga sociedade estruturava-se geográficamente, como as tribos, hoje agimos em função do que se passa na vitrine do mundo em que a Net já se tornou. Tudo rola à velocidade da luz.
Ou seja, hoje estruturamos as nossas vidas virtual e biográficamente, as tribos - tal como as ameaças - são verdadeiramente globais, desenvolvem-se com os factos mundiais, pouco ou nada importando o lugar de origem ou as pessoas em questão.
Ontem um eurodeputado deu conta desse medo e nós tomámos devida nota dessa mutação, ou seja, a digitalização das sociedades e o efeito amplificado de globalização competitiva - propulsionado pelos neo-media - que tem o YouTube à cabeça (tão desvalorizado pelos media tradicionais, que perdem peso comercial e importância editorial) faz com que as ameaças, os perigos e os riscos globais - se estruturem em termos de pressuposições, medos, conjecturas e atitudes que o "outro" (neste caso um grupo terrorista que deixou de o ser em horas) tenha para connosco.
No fundo, o que o eurodeputado português deu ao mundo foi um sinal assustado de reflexividade em que, por um lado, temia pela própria vida; por outro, mostrou que o lugar donde somos originários já não é relevante e que os anjos, as tribos, os demónios e os terroristas (e também os ex-terroristas) jogam a sua pressão nos demais actores do sistema, operando como um virús de efeito múltiplo que pode contagiar todo um corpo que é composto por pessoas, sociedades, valores, crenças e normas, i.é, todo o edifício jurídico-valorativo do Ocidente cristão que está hoje em jogo...
Este receio do eurodeputado faz lembrar a revolta das salamandras ou o triunfo dos porcos em que certos animais - ainda que travestidos de pessoas - assumem o comando simbólico da rede de relações sociais e ditam as regras do jogo. É como se os pobres,os marginais e os explorados do mundo, os deserdados da terra, os povos mudos do mundo, num ápice, pudessem assumir o comando das alavancas do navio e passassem a ditar as regras da navegação e dissessem quem primeiro ía ao fundo ou era comido pelos tubarões.
Talvez devêssemos todos aprender com o verdadeiro significado de tudo que se passou em menos de 24 h. De facto, nesta aldeia global - com que nem Marshall McLuhan sonhou - manda quem captura o capital-simbólico e não quem tem o dinheiro ou os instrumentos legais de fazer política. Por último, fiquei também a saber que hoje se pode morrer pelo simples facto de alguém ter colocado um vídeo no YouTube em que a nossa imagem aparece, nem que seja a dançar...
Qualquer dia teremos de equacionar sériamente melhor a vantagem e as consequências da utilização dos mails, dado que as cartas de amor são ridículas - como explicou Fernando Pessoa - , a vantagem do msn, do Skype e demais dispositivos de comunicação hoje disponíveis na rede, não vá o diabo tecê-las. Qualquer dia, e vem isto a propósito da problemática do aborto que hoje divide a sociedade portuguesa, teremos mesmo de equacionar a possibilidade não só de viver como também de pedir para nascer, solicitando, antecipadamente aos nossos progenitores - que tenham cuidado com a prática das relações sexuais - não vão eles colocar no mundo nados-mortos...
Nós já não vivemos no mundo, vivemos no anti-mundo...