É sabido que em Portugal não existe prevenção rodoviária. Existe, sim, caça à multa, o que é substancialmente diferente. Nos países onde existe prevenção rodoviária, o objectivo é evitar acidentes e mortes e, por isso, a polícia está à vista e a existência de radares nas zonas de maior perigo está assinalada para que os condutores abrandem. Entre nós, sucede exactamente o contrário: a polícia continua a privilegiar a técnica da emboscada, como se estivesse a caçar contrabandistas. A BT faz tudo o que pode para não ser identificada como tal e a prova de que a sua missão principal é sacar multas e não evitar acidentes é que eles privilegiam os locais onde não há perigo e por isso se anda mais depressa, e não os locais perigosos, onde só os condutores perigosos não abrandam: apenas 10% dos acidentes mortais acontecem nas auto-estradas, mas é lá que acontecem 90% das autuações por excesso de velocidade.
Na cabeça dos polícias de trânsito foi introduzido um «chip» há vários anos destinado a convencê-los para todo o sempre de que a única causa de acidentes é o excesso de velocidade. Isso legitima a caça à multa por excesso de velocidade, sem a qual os cofres do Estado, da Direcção-Geral de Viação e da esquadra de onde procede a equipa policial viveriam bem pior. Cada vez que um responsável da BT é ouvido para explicar as razões de determinado acidente, ele invariavelmente fala do excesso de velocidade. Ainda esta semana, a propósito de mais um acidente mortal numa curva do IP-4, onde este ano já morreram sete pessoas, lá estava o oficial da BT a explicar a causa do acidente: excesso de velocidade.
Nem por um momento lhe ocorreu que talvez a culpa fosse do mau desenho da curva. A tese do excesso de velocidade serve-lhes para tudo e em todas as circunstâncias, e é por isso que nenhum de nós jamais viu um polícia a controlar manobras perigosas, ultrapassagens em traço contínuo, mau estado dos pneus, funcionamento dos faróis, excesso de carga e outras coisas que matam e que depois vão para o relatório policial à conta de “excesso de velocidade”.
Se assim não fosse, se a BT se preocupasse com essas minudências, o trabalho seria certamente mais complicado e dificilmente conseguiriam cumprir os mínimos de multas diárias que cada brigada é incentivada a cumprir, a bem dos cofres do posto, da DGV e do Estado.
Mas sucede que, nos últimos anos, o número de mortos nas estradas portuguesas está finalmente a diminuir substancialmente. Desconfio que a explicação tem que ver com a melhoria das estradas, do parque automóvel e do resultado das inspecções obrigatórias (apesar das batotas conhecidas) e de alguma moralidade que finalmente tenha sido introduzida no ensino. Mas, segundo a lógica das autoridades, a explicação só pode ser outra: os portugueses conduzem agora mais devagar. Se é essa a explicação, então fatalmente que ela tem de assentar numa estatística simples: se os portugueses conduzem mais devagar, deve ter descido o número de autuações por excesso de velocidade. Verdade? Não, falso. Elas são tantas, que o prazo de prescrição das contravenções fundadas no Código da Estrada, que era de um ano e depois passou para dois, poderá chegar, com o novo Código, aos três anos e meio. Três anos e meio para que a máquina administrativa da DGV consiga notificar um infractor de uma contravenção! Em termos de direitos de defesa, é simplesmente notável: como se pode defender um condutor que recebe uma notificação a dizer que há três anos, às tantas horas do dia tal, na estrada tal, foi detectado pelo radar em excesso de velocidade ou a falar ao telemóvel?
Porém, o sistema de justiça rodoviária em vigor não é apenas errado, injusto e abusivo, quanto aos direitos de defesa. Ele é, também, em si mesmo, causa directa de insegurança nas estradas. Porque não visa tirar das estradas os maus condutores, os que matam: visa apenas castigar quem excede os limites de velocidade, mesmo que não cause perigo algum e seja um condutor exemplar. Um simples exemplo: há quinze dias, um condutor (mais um!) entrou em contramão numa auto-estrada do Norte e percorreu 23 quilómetros até ser parado pela polícia. Tinha cinco vezes mais álcool no sangue do que o limite máximo permitido. Só por sorte não matou ninguém, mas é um assassino em potência: mais dia, menos dia, matará. Pois foi levado a tribunal e, como o caso é grave, saiu em liberdade para aguardar julgamento. Até aí, tudo bem: o problema é que saiu, como saem sempre nestes casos, com a carta no bolso: até que o julgamento se faça, vai dispor de dois ou três anos para andar por aí, bêbado e em contramão nas auto-estradas.
Se a nossa prevenção rodoviária quisesse tirar das estradas os assassinos, bastar-lhe-ia fazer uma coisa muito simples: organizar o cadastro dos condutores não pelas infracções, mas pela sinistralidade. Porque uma pessoa pode ter sido apanhada vinte vezes em excesso de velocidade e nunca ter causado um acidente; e, inversamente, pode nunca ter excedido os limites de velocidade, não ter causado infracção alguma ao Código da Estrada, e ter morto pessoas ao volante. O primeiro, tem de sair da estrada, mesmo sem nunca ter causado perigo; o segundo, pode lá continuar, com cadastro de bom condutor, até matar o próximo. O problema é que se a DGV adoptasse esta filosofia, chegaria a conclusões que contrariam a doutrina comodamente estabelecida e poria em causa as receitas arrecadadas nas estradas: chegaria à conclusão de que, salvo excepções evidentes, não há relação directa e obrigatória entre a velocidade e a sinistralidade. Esta depende de muitos outros factores, dos quais o principal é um que não vem no Código da Estrada: o civismo ao volante. Tudo isto já foi dito, redito e explicado um sem-número de vezes, por pessoas com muito mais autoridade na matéria do que eu. Está provado e documentado em estudos internacionais a que por cá ninguém liga. Mas sucedem-se os responsáveis e os ministros e a filosofia é sempre a mesma. E continuará a sê-lo enquanto se verificar a situação amoral de a entidade autuante ser parte directamente interessada na autuação. Imaginem que um juiz recebia dinheiro por cada condenação decretada: acham que se faria justiça?
2 Durante décadas, uma ida a um notário era um verdadeiro suplício. As instalações eram decrépitas, não havia sequer onde se sentar, enquanto se esperavam horas (com hora marcada...) para que o senhor notário nos fizesse o favor de celebrar uma escritura, paga a peso de ouro, e depois de ele ter despachado previamente as ‘cunhas’ que tinha em carteira. Deve-se à passagem de Celeste Cardona pela Justiça a verdadeira pequena-grande revolução que foi a privatização dos notários - ideia recebida com um coro de ameaças e promessas de caos pelos notários encartados de então. Mas a ideia foi avante e o mercado funcionou: hoje, os notários não têm nada que ver com o que existia antes. São instalações quase de luxo, um serviço personalizado, horários cumpridos, profissionalismo e eficiência. E é justamente quando os utentes estão satisfeitos que o Governo se propõe dar o golpe de morte nos notários com o projecto “casa pronta”, que visa retirar-lhes, a benefício das Conservatórias, as escrituras relativas à compra e venda de imóveis. Ou seja, depois de ter privatizado, com excelentes resultados, parte substancial dos actos notariais, propõe-se agora voltar a expropriá-los a favor do Estado. Mesmo que a intenção possa ser boa (reunir todos os actos numa mesma repartição), a medida não faz nenhum sentido e não garante, de forma alguma, que os utentes saiam a ganhar. Haja calma nas boas intenções!"
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Obs. Macroscópicas direitinhas alí ao Miguel Sousa Tavares.
É aqui que o bom do MST nos vem com a prevenção rodoviária. Interessante, certamente, mas talvez não o assunto mais candente ou oportuno. Contudo, reconheço que isto que escrevo também é relativo.
Confesso que o agenda-setting do MST parece-me mais um fenómeno do Entroncamento do que um conceito amplo de Interesse Público pautado pelos valores e normas que explicitados numa reflexão anterior.
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