domingo

Público e notório - por Miguel Sousa Tavares -

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[in expresso, assin.]
Público e notório
"Se a prevenção rodoviária quisesse tirar das estradas os assassinos, bastar-lhe-ia organizar o cadastro dos condutores não pelas infracções, mas pela sinistralidade
É sabido que em Portugal não existe prevenção rodoviária. Existe, sim, caça à multa, o que é substancialmente diferente. Nos países onde existe prevenção rodoviária, o objectivo é evitar acidentes e mortes e, por isso, a polícia está à vista e a existência de radares nas zonas de maior perigo está assinalada para que os condutores abrandem. Entre nós, sucede exactamente o contrário: a polícia continua a privilegiar a técnica da emboscada, como se estivesse a caçar contrabandistas. A BT faz tudo o que pode para não ser identificada como tal e a prova de que a sua missão principal é sacar multas e não evitar acidentes é que eles privilegiam os locais onde não há perigo e por isso se anda mais depressa, e não os locais perigosos, onde só os condutores perigosos não abrandam: apenas 10% dos acidentes mortais acontecem nas auto-estradas, mas é lá que acontecem 90% das autuações por excesso de velocidade.
Na cabeça dos polícias de trânsito foi introduzido um «chip» há vários anos destinado a convencê-los para todo o sempre de que a única causa de acidentes é o excesso de velocidade. Isso legitima a caça à multa por excesso de velocidade, sem a qual os cofres do Estado, da Direcção-Geral de Viação e da esquadra de onde procede a equipa policial viveriam bem pior. Cada vez que um responsável da BT é ouvido para explicar as razões de determinado acidente, ele invariavelmente fala do excesso de velocidade. Ainda esta semana, a propósito de mais um acidente mortal numa curva do IP-4, onde este ano já morreram sete pessoas, lá estava o oficial da BT a explicar a causa do acidente: excesso de velocidade.
Nem por um momento lhe ocorreu que talvez a culpa fosse do mau desenho da curva. A tese do excesso de velocidade serve-lhes para tudo e em todas as circunstâncias, e é por isso que nenhum de nós jamais viu um polícia a controlar manobras perigosas, ultrapassagens em traço contínuo, mau estado dos pneus, funcionamento dos faróis, excesso de carga e outras coisas que matam e que depois vão para o relatório policial à conta de “excesso de velocidade”.
Se assim não fosse, se a BT se preocupasse com essas minudências, o trabalho seria certamente mais complicado e dificilmente conseguiriam cumprir os mínimos de multas diárias que cada brigada é incentivada a cumprir, a bem dos cofres do posto, da DGV e do Estado.
Mas sucede que, nos últimos anos, o número de mortos nas estradas portuguesas está finalmente a diminuir substancialmente. Desconfio que a explicação tem que ver com a melhoria das estradas, do parque automóvel e do resultado das inspecções obrigatórias (apesar das batotas conhecidas) e de alguma moralidade que finalmente tenha sido introduzida no ensino. Mas, segundo a lógica das autoridades, a explicação só pode ser outra: os portugueses conduzem agora mais devagar. Se é essa a explicação, então fatalmente que ela tem de assentar numa estatística simples: se os portugueses conduzem mais devagar, deve ter descido o número de autuações por excesso de velocidade. Verdade? Não, falso. Elas são tantas, que o prazo de prescrição das contravenções fundadas no Código da Estrada, que era de um ano e depois passou para dois, poderá chegar, com o novo Código, aos três anos e meio. Três anos e meio para que a máquina administrativa da DGV consiga notificar um infractor de uma contravenção! Em termos de direitos de defesa, é simplesmente notável: como se pode defender um condutor que recebe uma notificação a dizer que há três anos, às tantas horas do dia tal, na estrada tal, foi detectado pelo radar em excesso de velocidade ou a falar ao telemóvel?
Porém, o sistema de justiça rodoviária em vigor não é apenas errado, injusto e abusivo, quanto aos direitos de defesa. Ele é, também, em si mesmo, causa directa de insegurança nas estradas. Porque não visa tirar das estradas os maus condutores, os que matam: visa apenas castigar quem excede os limites de velocidade, mesmo que não cause perigo algum e seja um condutor exemplar. Um simples exemplo: há quinze dias, um condutor (mais um!) entrou em contramão numa auto-estrada do Norte e percorreu 23 quilómetros até ser parado pela polícia. Tinha cinco vezes mais álcool no sangue do que o limite máximo permitido. Só por sorte não matou ninguém, mas é um assassino em potência: mais dia, menos dia, matará. Pois foi levado a tribunal e, como o caso é grave, saiu em liberdade para aguardar julgamento. Até aí, tudo bem: o problema é que saiu, como saem sempre nestes casos, com a carta no bolso: até que o julgamento se faça, vai dispor de dois ou três anos para andar por aí, bêbado e em contramão nas auto-estradas.
Se a nossa prevenção rodoviária quisesse tirar das estradas os assassinos, bastar-lhe-ia fazer uma coisa muito simples: organizar o cadastro dos condutores não pelas infracções, mas pela sinistralidade. Porque uma pessoa pode ter sido apanhada vinte vezes em excesso de velocidade e nunca ter causado um acidente; e, inversamente, pode nunca ter excedido os limites de velocidade, não ter causado infracção alguma ao Código da Estrada, e ter morto pessoas ao volante. O primeiro, tem de sair da estrada, mesmo sem nunca ter causado perigo; o segundo, pode lá continuar, com cadastro de bom condutor, até matar o próximo. O problema é que se a DGV adoptasse esta filosofia, chegaria a conclusões que contrariam a doutrina comodamente estabelecida e poria em causa as receitas arrecadadas nas estradas: chegaria à conclusão de que, salvo excepções evidentes, não há relação directa e obrigatória entre a velocidade e a sinistralidade. Esta depende de muitos outros factores, dos quais o principal é um que não vem no Código da Estrada: o civismo ao volante. Tudo isto já foi dito, redito e explicado um sem-número de vezes, por pessoas com muito mais autoridade na matéria do que eu. Está provado e documentado em estudos internacionais a que por cá ninguém liga. Mas sucedem-se os responsáveis e os ministros e a filosofia é sempre a mesma. E continuará a sê-lo enquanto se verificar a situação amoral de a entidade autuante ser parte directamente interessada na autuação. Imaginem que um juiz recebia dinheiro por cada condenação decretada: acham que se faria justiça?
2 Durante décadas, uma ida a um notário era um verdadeiro suplício. As instalações eram decrépitas, não havia sequer onde se sentar, enquanto se esperavam horas (com hora marcada...) para que o senhor notário nos fizesse o favor de celebrar uma escritura, paga a peso de ouro, e depois de ele ter despachado previamente as ‘cunhas’ que tinha em carteira. Deve-se à passagem de Celeste Cardona pela Justiça a verdadeira pequena-grande revolução que foi a privatização dos notários - ideia recebida com um coro de ameaças e promessas de caos pelos notários encartados de então. Mas a ideia foi avante e o mercado funcionou: hoje, os notários não têm nada que ver com o que existia antes. São instalações quase de luxo, um serviço personalizado, horários cumpridos, profissionalismo e eficiência. E é justamente quando os utentes estão satisfeitos que o Governo se propõe dar o golpe de morte nos notários com o projecto “casa pronta”, que visa retirar-lhes, a benefício das Conservatórias, as escrituras relativas à compra e venda de imóveis. Ou seja, depois de ter privatizado, com excelentes resultados, parte substancial dos actos notariais, propõe-se agora voltar a expropriá-los a favor do Estado. Mesmo que a intenção possa ser boa (reunir todos os actos numa mesma repartição), a medida não faz nenhum sentido e não garante, de forma alguma, que os utentes saiam a ganhar. Haja calma nas boas intenções!"
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Obs. Macroscópicas direitinhas alí ao Miguel Sousa Tavares.

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A originalidade dos artigos de MST suscitam-me tanta curiosidade...

É óbvio que não vamos ditar daqui ao MST qual é ou deverá ser o seu agenda-setting.Ele tem sempre um, escolhido por ele, com o seu próprio timing. O que ele escreve é estruturado e sólido, como decorre da sua educação e da sua forte personalidade e até clarividência. Mas não é necessário ser doutorado em sociologia da informação para perceber que o jornalista valoriza o que lhe é caro e desvaloriza o que lhe desagrada, manipulando assim o sentido cronológico do tempo em que as notícias e os factos ocorrem e desvirtuando aquilo que é, a cada momento, o interesse público.

Bem sei - que este é um conceito fluído, movediço e altamente subjectivizado em função dos actores e players que no mercado da política, da economia e da opinião o tentam racionalizar. Tentando sempre, mas sempre, capitalizar dividendos políticos (e interpretativos) dele, como me parece ser este caso de MST - com mais este importante tema. Importante, mas talvez não o mais oportuno, especialmente num momento em que o país está a braços com "n" casos de corrupção desportiva - que nem um sequer consegue desvendar, julgar, sentenciar. Para que sirva de exemplo e inibir os futuros corruptos a fragmentar a sociedade e a paralisar o funcionamento normal das instituições em nome da chamada verdade desportiva.

É aqui que o bom do MST nos vem com a prevenção rodoviária. Interessante, certamente, mas talvez não o assunto mais candente ou oportuno. Contudo, reconheço que isto que escrevo também é relativo.

É o problema do agenda-setting... O MST até pode escolher falar nos incêndios de inverno ou nas cheias de Verão, se quiser ser mais original poderá até falar nas pessoas que na sua rua já morderam ou mataram cães à dentada, ou de ovnis que lhe entraram pela porta adentro e acenderam cigarrinhos Malboro com um isqueiro Dupont... Mas o que ele não deve fazer é confundir a Opinião pública acerca da oportunidade das notícias objecto de divulgação. O "cronos" de MST parece-me tão discutível quanto problemático.

Mas eu também não poderei falar muito, porque o Macro está repleto de referências aos clássicos, como Maquiavel, Kant, Hobbes e outros que já morreram, por isso, se calhar, também anda desactualizado ou mesmo desfocado da realidade. Talvez nós por aqui só devêssemos falar nas virtudes do neoliberalismo.

Mas porra (!!!) - para este sentido de oportunidade, que até um cego percebe que é político. Do alto da inteligência do MST - daqui lhe quero dizer - ou perguntar - se ele ainda pensa que os tugas - todos ou só alguns deles - ainda comem sorvetes com a testa... E, en passent, aproveito para alargar a questão e perguntar se ele, doravante, vai continuar a falar no expresso nos tais incêndios de Inverno, nas cheias de Verão e nos tais casos dos homens que matam Pit Bulls à dentada.

Confesso que o agenda-setting do MST parece-me mais um fenómeno do Entroncamento do que um conceito amplo de Interesse Público pautado pelos valores e normas que explicitados numa reflexão anterior.