sexta-feira

Imobilismo e reforma - por António Vitorino -

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Imobilismo e reforma [in dn]

António Vitorino
Jurista O debate sobre a denominada "flexigurança" entre nós começou mal! Contudo, não tenhamos ilusões, trata-se de um tema importante que veio para ficar.O termo que assim entrou de supetão na nossa vida pública, em boa verdade, não existe em português: trata-se de uma justaposição de dois conceitos aparentemente contraditórios - flexibilidade e segurança. Flexibilidade centrada sobretudo nos elementos estruturantes do funcionamento do mercado laboral, segurança reportada à protecção face aos riscos sociais.
As primeiras reacções públicas foram muito parcelares: os sindicatos só viram na flexibilidade a liberalização dos despedimentos individuais, os patrões precaveram-se face ao potencial aumento de contribuições para sustentação da rede pública de protecção social.
Naturalmente cada um reagiu ao que mais directamente os preocupa no imediato. Mas as fronteiras do tema "flexigurança" vão muito para além desses dois pontos específicos.
O consenso fez-se logo em torno de um ponto simples: sendo um conceito oriundo da Dinamarca, atentas as diferenças de nível de desenvolvimento económico e social de Portugal, a sua utilização entre nós seria impensável!
Contudo, conforme já foi decidido pelos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia, a própria Comissão está encarregue de apresentar nos próximos meses ao Conselho Europeu um Relatório sobre a sustentabilidade e a reforma do modelo social europeu que se baseará, em larga medida, na agenda da "flexigurança". Ora, tal significa que os temas que recaem neste termo exótico não poderão deixar de ser ponderados pela Comissão à luz das assinaláveis diferenças de desenvolvimento económico e social nos 25 Estados membros da União. Pelo que o assunto não morrerá apenas por o considerarmos uma bizarria dinamarquesa.
O desafio que se coloca à Comissão Europeia tem assim a ver não só com as diferenças entre os Estados membros mas sobretudo com a necessidade de conciliar dois pólos aparentemente contraditórios: a flexibilidade, que indicia mobilidade, adaptabilidade, dinamismo concorrencial por um lado e, por outro, a segurança, que indicia estabilidade, protecção, redistribuição justa e equitativa. O que se pede, portanto, é uma visão clara que defina o justo ponto de equilíbrio entre aqueles dois pólos em nome da sustentabilidade e da reforma do modelo social europeu atentas as suas diversas formas de manifestação.
Sucessivos relatórios de organizações internacionais assinalam que um dos problemas centrais da competitividade europeia se prende com a rigidez dos mercados laborais. Esta questão normalmente é identificada com os entraves de ordem legal ou processual aos despedimentos, sobretudo individuais. Mas o panorama das condições dos despedimentos é muito diversificado nos vários países europeus. Para a rigidez dos mercados laborais contam igualmente outras questões como a falta de mobilidade da mão-de-obra, os entraves à livre circulação de trabalhadores (mesmo dentro da mesma empresa), aspectos atinentes às condições de prestação do trabalho (horários de trabalho, trabalho por turnos, organização das folgas e das férias) e ainda as condições de acesso ao mercado de trabalho dos trabalhadores imigrantes.
Do lado da segurança, a tendência é para a reduzir à garantia de estabilidade no posto de trabalho, num modelo de "emprego para toda uma vida" que cada vez mais é posto em causa pela própria evolução da economia global em que vivemos. Ora, o reforço da segurança e da protecção perante os riscos sociais tem cada vez mais a ver com as condições de empregabilidade dos trabalhadores, com os sistemas integrados de formação profissional nas próprias empresas, com a organização de uma carreira laboral que integre períodos de aprendizagem ao longo da vida, com os modelos de incentivo para a reentrada no mercado de trabalho.
Estes elementos todos terão de ser chamados à colação no debate sobre "flexigurança" e aquele justo ponto de equilíbrio deverá ser ponderado globalmente e não apenas ficar prisioneiro de este ou aquele aspecto parcelar.
Como não há "soluções mágicas", as reformas do modelo social europeu terão de ser adaptadas a cada situação concreta nacional (e às vezes mesmo regional), para cuja definição haverá que contar com a capacidade (e vontade) de contratualização dos parceiros sociais e com uma função reguladora eficaz do Estado.
O imobilismo nestas matérias será uma receita segura para o desastre a prazo. Escolher a via das reformas (mesmo que aqui e além dolorosa) será a única solução para responder aos desafios da globalização e salvaguardar a sustentabilidade das várias modalidades do Estado social europeu.
A palavra à Comissão Europeia, portanto!
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Notas Macroscópicas
Lê-se bem este artigo, mais um de António Vitorino. Sempre um "armazém" de talento, inteligência e eficácia argumentativa. E depois não é superficial nas abordagens, como os profetas de domingo, só não compreendo a forma como termina o artigo - sabendo ele, sabendo nós, sabendo a Europa, e até já sabendo G.W.Bush (10 milhões de tugas + 450 milhões de europeus + meio milhão de norte-americanos, já é muita gente.. - quase tantos como os chineses) - que a Comissão não tem palavra - aqui na dupla acessão.

Explicito: nem palavra de honra, nem vox na matéria por ausência de skills & knowledge. Ou seja, fujão barroso há muito que deixou de ser confiável, representa hoje uma Europa-falhada - por comparação ao conceito de rogue-sate que faz carreira em alguns Estados corruptos e ineptos do continente africano. Daí a minha reserva aquela última frase, quanto ao mais é um excelente artigo. Diria mesmo que ele é um artigo-doutrina porque incorpora as orientações que os poderes europeus deverão/poderão seguir a fim de aplacar este terrível problema que é o de fazer crescer a economia e, ao mesmo tempo, integrar social e profissionalmente as pessoas no mercado de trabalho global e fazer da Europa um dos pólos mais desenvolvidos e competitivos do mundo, conforme os desígnios da Estratégia de Lisboa, lançada por António Guterres em 1995. No fundo, é atingir a tal quadratura do círculo - hamonizando economia, sociedade e política em contexto de globalização competitiva. O que não é fácil...

Mas o meu comentário relativamente ao texto de António Vitorino situa-se também no plano do controlo do espaço e do espaço - o que nos remete para a avaliação de questões trilemáticas, ao invés de outrora - em que os problemas tradicionais tinham uma composição dilemática - colocada em sistemas fechados delimitados pelas velhas fronteiras territoriais e sujeitos a uma oposição bipolar em termos de interesses sociais contrapostos:
  • Ricos contra pobres
  • Domimantes contra dominados (na velha edição do conflito social "quando o Marx ainda usava barbas")
  • Nacionalistas contra internacionalistas, etc..

E em termos de grandes orientações políticas aquela dilematicidade também se colocava entre conservadores vs progressistas, modernizadores vs tradicionalistas, numa palavra: entre esquerda vs direita. E é aqui que aquela reflexão de AV ganha, em nosso entender, maior amplitude e projecção epistemológica, se é que estou lendo bem e tirando correctamente as ilações. É mais um artigo de fronteira, na medida em que sugere uma alteração geral de circunstâncias que conduz - por extensão - à modificação da eficácia dos poderes políticos nacionais. Agora, mormente, nas questões relacionadas com as condições laborais em toda a Europa - cujo estatuto geoestratégico se encontra fortemente enfraquecido, sobretudo ao longo deste dois anos de secretariado durão barrso.

E é aqui que ressalta um outro aspecto sugerido por aquele artigo, o de saber quem controla o ritmo da mudança, exerce o domínio sobre o tempo. Se o domínio sobre o espaço se inseria no campo estratégico-militar, o domínio sobre o tempo é, hoje, da ordem do estratégico-político. Naquele caso está-se perante uma questão de defesa ou de conquista, onde a finalidade essencial era preservar um equilíbrio de forças (defesa) ou de conseguir uma superioridade de forças que consolidavam a tal conquista. Neste último caso, a coisa fia mais fino - como notou AV na sua reflexão, pois está-se perante uma questão de sintonia e de adaptação estratégica, onde a finalidade essencial é (já) articular os processos de mudança, as correntes de inovação, concertar a política, a economia e os sindicatos de modo a que o sistema de relações e os objectivos existentes na sociedade possam subsistir apesar das pressões impostas por essas correntes da modernidade.

Sucede, porém, que essa finalidade essencial do domínio sobre o tempo e o espaço não depende apenas das decisões tomadas no seio desses territórios e para essas populações, também depende do que for a (co)evolução das outras sociedade (sobretudo - norte-americana e asiática - que são as mais dinâmicas) e dos demais pólos de decisão, viso que é desses outros núcleos da decisão que irá depender a intensidade dos factores e das correntes de mudança. Daí o trilema em que estamos metidos nesta nossa problemática modernidade.

Numa palavra: esta, "a palavra", jamais poderá ser de quem nunca a honrou nem dela fez ius de competência e eficácia, mas de quem a sabe honrar e a torna mais eficiente e eficaz, até com um breve reflexão de jornal.

Mas sejamos sérios: é muita coisa ao mesmo tempo...