Diogo Pires Aurélio escreve sobre Cesariny
A foto é nossa.
"Ele andou, toda a vida, associado a umas quantas bizarrias, que fizeram, no imaginário do século XX, o charme e a perdição do surrealismo. Viveu como pôde, disse o que muito bem entendia, amou a quem amou, e aos costumes disse nada. Até muito tarde, desconfiou-se daquela exuberância com que o génio lhe transbordava para fora dos livros e dos quadros e entrava pela realidade adentro, sem que ele parecesse fazer grande distinção entre uma coisa e outra. Depois, quando a rebeldia se banalizou e confundiu com verniz social, entrando no rol de virtudes para meninos e meninas casadoiras, houve histórias suas que passaram a fazer parte da mitologia urbana. Era, já então, para muita gente, uma personagem. Não sei se haveria assim tantos a dar pelo artista que habitava dentro dessa personagem e que usava o mesmo nome: Mário Cesariny de Vasconcelos.Cesariny, diz-se, foi o surrealismo português. Tal afirmação, todavia, não sendo totalmente falsa, também não é totalmente justa para o poeta, nem mesmo para o pintor, pese embora o tom elogioso com que se lhe apresenta. É possível que, sem a autenticidade que ele emprestou à literatura e à arte em geral, sem o vigor e a coerência com que ele afirmou publicamente a "liberdade livre", o movimento nunca teria ido muito além de um simples epifenómeno do surrealismo francês.
Cesariny, porém, está para lá de qualquer movimento ou escola. E se, a partir de certa altura, o surrealismo lhe tomou conta da imagem e da própria escrita, a ponto de se confundirem um com o outro, não foi por simples questão de moda ou de vanguardas: foi porque, consciente ou inconscientemente, ele encontrou no movimento inspirado por Breton a armadura conceptual e afectiva de que precisava para desafiar uma literatura ocupada pelo gigantismo de Pessoa e uma cultura em que, apesar dos modernismos, persistiam arcaísmos com mais de dois séculos.
Bem vistas as coisas, toda a obra de Cesariny decorre entre esses dois marcos pessoanos que são o já longínquo Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos e o mais recente O Virgem Negra. Do ponto de vista da literatura portuguesa, aí é que era Rodes, aí é que era preciso saltar. Quanto ao resto, como ele escreveu, "Sim consumada a obra sobram rimas/pois ela é independente do obreiro/no deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores/é que se vê se a obra está completa".
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