Referendo - por António Vitorino -
António Vitorino
Jurista
Um semanário publicou na passada semana uma sondagem referente às intenções de voto no próximo referendo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas de gravidez. Os resultados provocam um certo sentimento de déjà-vu... Com efeito, também há oito anos, na rampa de lançamento do referendo sobre o mesmo tema, o panorama apontava para uma maioria de opiniões favoráveis à despenalização (até na mesma ordem de grandeza da que se verifica agora, quando ponderados apenas os votos dos que têm opinião formada) mas para alguma incerteza quanto ao nível de afluência às urnas.
Depois foi o que se viu: a participação eleitoral foi escassa, abaixo da metade mais um dos eleitores inscritos que constitui o requisito constitucional e legal para que o referendo tenha efeito vinculativo, tendo o campo de "não" sido mais eficaz na mobilização dos seus apoiantes, o que lhe permitiu suplantar o campo do "sim". O referendo não teve efeitos jurídicos, como se sabe, mas produziu plenamente efeitos políticos: a iniciativa despenalizadora não procedeu e o PS assumiu o compromisso de que só haveria alteração da lei mediante uma nova aprovação em referendo.
Retomada a iniciativa do referendo no Parlamento (que aguarda agora a posição do Tribunal Constitucional e do Presidente da República), as sondagens já conhecidas aconselham o campo do "sim" a ponderar cuidadosamente o cenário presente e a provar que souberam retirar as lições do insucesso de há oito anos. Desde logo é marcante que as percentagens de cidadãos com opinião formada não tenha sofrido grande oscilação. Isso significa à partida que o tema gera dois campos opostos de opinião firme e consolidada que se mantêm reciprocamente na mesma proporção no essencial. O que faz com que em larga medida o sucesso do referendo dependa dos que não têm ainda uma opção tomada e que portanto estarão disponíveis para ponderarem os argumentos dos dois lados.
Sou dos que pensam que mais do que a opinião pessoal expressa há oito anos pelo então primeiro-ministro António Guterres, o que pesou decisivamente no resultado do referendo foi o tipo de campanha que o campo do "sim" levou a cabo. Os erros dessa campanha devem ser cuidadosamente levados em linha de conta para que não se repitam desta feita. Desde logo a constatação de facto de que estamos perante uma proposta moderada, cuja defesa não pode ser feita com base em argumentos absolutos. Estando em presença de dois direitos fundamentais (um o direito da mulher a decidir da procriação, outro o direito à vida do feto), a concordância prática destes direitos naquilo em que eles possam colidir tem que ser encontrada numa base razoável, em linha com o que são as soluções definidas na generalidade dos ordenamentos do nosso espaço político- -cultural e nunca com base na afirmação de um direito absoluto à disposição do corpo que acabaria por justificar não apenas soluções equilibradas como a proposta mas antes soluções extremas.
Soluções essas que não só não encontram acolhimento na generalidade das legis- lações vigentes como se traduziriam no sacrifício absoluto de um direito perante o outro fora do nosso quadro constitucional.Ora o que neste referendo está em causa é a definição, do ponto de vista jurídico-penal, do momento a partir do qual a vontade da mulher cessa perante critérios legais de protecção do feto.
O argumento da despenalização é tanto mais forte quanto mais se fizer a demonstração do equilíbrio da solução legal proposta. Disso dá prova a tentativa dos partidários do "não" de encontrarem soluções de "engenharia jurídica" (suspensão dos processos ou punição sem efectiva aplicação da pena) que os façam sair do desconforto da defesa da pena de prisão que hoje a lei comina.
Neste contexto, a argumentação do campo do "sim" terá que responder a um duplo desafio. Por um lado, demonstrar o bem fundado da solução jurídico-penal proposta, dentro dos limites que são aceites pela consciência colectiva e, por outro, fazer a pedagogia da participação eleitoral como forma de assunção das responsabilidades colectivas perante uma questão que não se confina à lógica estreita da disciplina e da fidelidade partidárias.
É que a sondagem a que me venho referindo prova que a maior relutância em participar no referendo vem do eleitorado masculino, como se a questão do regime legal do aborto (e a própria decisão de abortar) fosse apenas uma questão do foro das mulheres.
Neste plano, o debate sobre a despenalização do aborto até às dez semanas não é apenas uma questão de índole jurídico-penal: é também uma questão eminentemente cultural para o campo dos defensores do "sim", onde se joga um dos princípios basilares do Estado de direito democrático - o da igualdade entre os homens e as mulheres.
- Obs do Macroscópio: façam-se 3 milhões de xerox para enviar aos interessados. Na certeza de que por ora não estamos no Verão - em que a desculpa para não ir votar é o sol, a praia, as ondas e o surf do Guincho, para alguns os incêndios, para muitos a falta de dinheiro; no Outono e no Inverno as desculpas são outras (previsivelmente): o frio, as chuvas e, agora, para alagar o problema e fazer-nos submergir, as cheias. Dá vontade de dizer que a questão do Aborto tem dias, depende da estação em que estamos e do clima que faz e, quiça, do fuso horário, dado que para Espanha converge muita senhora de bem (em busca do aborto prometido) proveniente da Guia, do Guincho, de Cascais, do Estoril, de S. João, de S. Pedro, de Carcavelos, da Parede, de Oeiras, de Stº Amato - enfim - até Caxias e Cruz Quebrada.. Basta percorre a linha. Se uma criança soubesse o que aqui dizemos dela antes de nascer creio que ela pedia antecipadamente a Deus para não vir ao mundo. Um mundo que anda muito climatérico, logo perigoso. De facto, somos uns animais... Nem para nós somos bons: temo que seja por causa da economia.
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