Segundas ao Sol: o emprego do tempo
- Há cerca de 1100 dias escrevi este artigo que foi publicado no então Euronotícias ou na revista Tempo, já não me recordo ao certo. Artigo esse que também foi republicado no n/ livro - Em Busca da Globalização Feliz, Hugin, 2005. Ontem à noite a RTPúm resolveu passar a película - Segundas ao Sol - que vale mais do que dezenas de compêndios de ciência política e de economia. Vi apenas uma parte, mas achei de excepcional interpretação e de grande realismo. Pelo facto deixamos aqui uma síntese desse nosso artigo já de há três anos na esquina do tempo e da memória dos factos - que ameaçam eternizar-se na esfera da globalidade.
(...)
(...) Se esta é a realidade das famílias, também o Estado cancela a despesa orçamental e antecipa receitas com os pagamentos por conta; as empresas, com fracas perspectivas de negócio, congelam investimentos e multiplicam despedimentos. A esta amálgama de desgraças, alguns chamam recessão e outros pobreza. É como ter uma bomba-relógio em casa. A economia mundial é como se fosse a soma em países dessas várias bombas. Mas será que tudo isto resultou do sobre-endividamento das famílias e empresas junto da banca, aproveitando a baixa taxa de juro? Terá sido só por causa da compra de habitação e do carro que entrámos em falência? Tudo agravado por uma política orçamental “expansionista” e sem sentido do passado? Seja como for, chegou a hora de pagar a factura. Mas com que dinheiro, se não há anéis nem dedos!? São sempre as classes mais desfavorecidas as mais penalizadas. Razão tem Francisco Sarsfield Cabral ao dizer que mais grave que a recessão é não mudarmos as nossas condições de competitividade (DN, 2/7/03). Os pobres têm tanto azar que quando chove sopa dos céus só têm garfos nas mãos. Ironias à parte o Portugal d’hoje invoca-me dois filmes (e meio). Dois da 7ª arte, meio da TV: O Emprego do Tempo, de Laurent Cantet (2001) e Segunda ao Sol. Ambos sobre o mundo do trabalho do nosso tempo.
- Aquele reflecte a história de um ex-quadro que durante anos mentiu à família que tinha sido despedido e mantinha a ilusão do estatuto social e do ordenado que já não tinha. Fazia do habitáculo do seu carro e dos parques de estacionamento dos hotéis, a sua residência. Simula estar empregado só porque não teve coragem de dizer que foi despedido, daí a ocupação do tempo ser um permanente fingimento.
- Penetra nas empresas para observar com nostalgia aqueles que trabalham. Simula reuniões, visita bibliotecas, marca encontros de negócios e, perante todos, finge ser quem não é. Chega até a enganar amigos deles recebendo dinheiro para supostas aplicações financeiras na bolsa de Moscovo.
- O segundo filme, Segunda ao Sol - retrata a história de um operário da construção naval de Vigo que partilha com quatro companheiros o infortúnio do desemprego. Um é imigrante do Leste, onde fora astronauta; o outro bebe para esquecer o desemprego e o abandono da mulher; o outro ainda tem mulher, mas para sua vergonha, ela trabalha; e o último passa o dia em entrevistas de emprego. Prepara-se para elas como para um exame de vida, buscando a juventude nas roupas ou na tinta preta para o cabelo.
- O “meio” filme é a Rede, interpretado pela bela Sandra Bullock, em que uma analista informática se vê envolvida numa rede de intriga e conspiração por alguém lhe ter atribuído uma falsa identidade e um registo criminal que também não é o seu. Sem dinheiro, identificação e credibilidade, terá de arranjar forças e recursos para lutar contra as forças do mal.
- Qualquer uma destas histórias neo-realistas, é um traço da globalização infeliz do nosso tempo. Ambas reproduzem viagens ao íntimo do desespero de milhões de pessoas. É impressionante verificar como o trabalho se apropria de todos os aspectos da vida, reflectindo depois o respectivo estatuto social em função de cada posição na sociedade. O trabalho liberta, como diria Hegel; mas a sua privação aprisiona o homem na “jaula” da existência.
- Cada vez mais o homem vive para trabalhar, como um animal de carga, em lugar de trabalhar para viver. Enfim, uma barbárie doce que anuncia filmes de Verão para os nossos políticos… E até apetece citar o nosso mestre e amigo Agostinho da Silva quando dizia e redizia que o homem não nasceu para trabalhar, mas para criar...
- Dedicamos este texto a todos aqueles que já passaram, passam ou estão em vias de passar por esse flagelo, ainda que estejamos vegetando sob este Verão tropical do tipo Guadalajara.
<< Home