sexta-feira

A carta e a luta pela sobrevivência política

Esta é a famosa Magna Carta de 1215 que, entre outras coisas, visou limitar o poder do monarca da velha Inglaterra, especialmente o Rei João que tinha, tal como muitos políticos e caciques locais, uma tendência nata para a arbitrariedade no exercício do poder que o cargos públicos lhes conferem. Ou seja, cometem o crime de abuso de poder, e muitos deles vão mais longe cometendo actos de nepotismo e de corrupção activa previstos na lei. Mas não é sobre este magno documento que vamos falar, vital que foi para a democracia ulterior - em todo o mundo - já que sem essa Carta os reis ainda hoje teriam, porventura, um poder altamente discricionário violando procedimentos legais hoje vitais a cada um de nós, cidadãos, num estado de direito - (o tal rule of law). Não é, pois, do constitucionalismo que aqui importa, mas os três objectivos que cada autor tem quando escreve uma carta a alguém, designadamente a uma entidade solicitando uma informação, a um serviço requerendo um documento, parecer ou regulamento que depois balizará toda a sua actividade na relação do cidadão com a Administração, ou ainda, por exemplo, quando um político - titular do poder central ou do poder local - envia uma carta para a rádio, a tv ou a imprensa escrita a fim de se tornar conhecida. Em todas essas circunstâncias se articula uma tricotomia a ter em conta. A saber:
  • 1. A intenção do(s) autor(es);
  • 2. A intenção da operação - resultante da própria interpretação da carta e do efeito que se pretende com ela;
  • 3. E a interpretação decorrente da própria intenção do leitor ao lê-la.
- Ou seja, quando estivermos confrontados com uma carta enigmática, que, por hipótese, esconde mais do que revela, oculta mais do que esclarece, temos de precisar o seguinte:
  • a) Devemos procurar no texto dessa carta o que o autor queria dizer;
  • b) Ou o que ele diz, independentemente das suas intenções.

- Ainda que procurando num documento o infinito dos sentidos que o autor introduziu no texto, ou procurando o infinito dos sentidos que o autor, ao invés, ignorou. Um texto, na realidade, nunca deixa de ser um texto, jamais se substitui à obra realizada (ou por realizar). Ou seja, um texto é apenas um fragmento da VERDADE. Pode enquadrá-la, mas jamais explica a história que está para trás. Uma carta, um texto podem sempre estimular algumas interpretações mas aqui convém recordar Valéry e dizer com ele: Il n'y a pas de vrai sens d'un text.

- Até porque quando se comete um erro político, ou na esfera da gestão ou na área dos negócios - a primeira inclinação racional de que o homem simples abre mão é escrever uma carta, geralmente auto-justificatória - como que pedindo perdão pelos erros cometidos durante um determinado processo. Ainda que o autor nem sequer disso se aperceba.

- Na esfera política já começa a ser frequente que alguns responsáveis, numa vã tentativa de se autocorrigirem (e relegitimarem) perante a opinião pública pelo peso social e político que, entretanto, perderam - escrevam cartas. Uns vão a Fátima rastejar com velas ao ombro e dando cabo das rótulas terminando depois a faina no hospital de Leiria ou Tomar; outros rezam no confessionário junto do padre que já deu cabo de 3 garrafas de Conventual ao almoço; outros vingam-se no jogo e nos vícios da carne que agora a minha educação me impede de descrever; e outros ainda escrevem para a rádio, para a tv-pirata e para jornais que já foram referência mas que hoje nem a treta dum título em condições conseguem fazer.

- São maneiras de estar na vida, são formas de fazer política, são os espelhos deste Portugal paroquial que ainda cheira mal e às vezes rima com o poder local.

- Uma carta, por vezes, não passa dum farrapo de linhas mais ou menos articuladas entre si - mas desligadas da realidade que era suposto servir, enquanto missão pública. E é nestes casos, reportando-nos áquela tricotomia - que não ficamos a saber nada:

  • 1) Nem as intenções do autor;
  • 2) Nem a natureza das operações;
  • 3) Nem a intenção do leitor.

- Inúmeros são já os casos em que o observador mais avisado é obrigado a identificar a imagem no tapete, i.é, entrar na floresta e detectar lá os galhos partidos, os galhos verdes e os galhos maduros. Mas para entrar nesse matagal cerrado é necessário um código secreto e uma chave. Um dia falaremos qui deles... Deles e dos já muitos amigos que temos pelas boas terras e boas gentes de Marvão - Some day, some day!!!!