domingo

A carta e a garrafa, o político e a parede

Ontem recuperámos aqui os três objectivos que presidem ou subjazem à elaboração duma carta: seja ela pessoal ou institucional, de amor, uma confissão ou com uma finalidade de luta política e com carácter autojustificatório - ou de má consciência pelo trabalho não realizado. Hoje, volvidas 24H., dizemos o seguinte: quando um texto é escrito, por exemplo com uma distância que medeia de Marvão a Oeiras (cerca de 300 klm) e enfiada numa garrafa - e tem um único destinatário mas depois se perde no mar da indiferença, é como estar no deserto e não encontrar o tal copinho d'água com sais e vitaminas. É frustrante. Quer dizer, há um texto - que mais parece uma meta-narrativa que dá três vezes a volta à Torre do Tombo, é suposto ter um destinário e acaba por não ter nenhum - so far - ressalta uma consequência: o autor da carta sabe que esse não-acto será interpretado não de acordo com as suas intenções, mas sim segundo uma complexa estratégia de interacções que envolvem não só os leitores mas toda a a comunidade que directa ou indirectamente testemunhou esse não-processo. Casos há em que uma carta é como uma obra política não encontrada (ou por realizar): num caso, o leitor busca o texto da carta e a carta que anúncia o texto mas nada encontra; noutros, os cidadãos aguardam que as obras e as promessas políticas se cumpram e só se deparam com pedregulhos no meio do caminho. Num caso, o leitor fica frustrado, no outro caso sai frustrado o cidadão eleitor. Em ambas as situações há uma crise de legitimidade porque o fosso entre o anunciado e o realizado aumenta, e a confiança - no escritor/autor como no político - é uma condição essencial para assegurar essa transação de competências. Num caso, o autor deixa de ser lido porque perdeu a face, noutro caso os cidadãos perdem a confiança num político porque este se revelou uma fraude. É neste ponto crítico que autor e político se encontram, entalados entre a espada e a parede ou com uma espada de Damôcles sobre a cabeça... E se tiver num ponto alto pode ainda cair mais depressa dada a compressão da altitude comandada pela própria lei da gravidade que impede que os corpos flutuem. Feliz ou infelizmente, ainda não somos pássaros...