Conto de Páscoa
Conto de Páscoa
João César das Neves
Professor universitário
Um programador construiu um dia um belo site na Internet, um enorme mosaico, com milhões de azulejos hexagonais de cores vivas e brilhantes. Mas fê-lo de forma curiosa. Usando métodos complexos de Teoria dos Jogos, Gestão de Informação e Modelos de Complexidade, programou os hexágonos para se irem juntando a outros, de acordo com as respectivas cores. Era como se fossem as próprias peças a escolher a quem se unir.
Cada ladrilho surgia no centro da página inicial e movia-se para as margens. Nascia, não em hexágono, mas como um círculo. Nessa forma redonda ele mal era capaz de se relacionar, pois tocava os próximos apenas num único ponto, em tangência. Mas com esses sucessivos encontros, os círculos iam alisando as faces, evoluindo para hexágonos à medida que se aproximavam das bordas da página. Quando lá chegavam, não só tinham adquirido a forma desejada, mas estavam unidos em lindos cachos de ladrilhos, na diversidade cromática que a sua escolha ditara.
Logo que cada conjunto de hexágonos tocava na margem da página inicial, o autor do site tomava-o e transportava-o para a segunda página, onde construía o mosaico. Era sempre um desafio emocionante ver como o arranjo único de cor e brilho de cada cacho se podia encaixar, mantendo a sua identidade própria, enquanto se integrava no desenho global. O site era uma combinação genial de arte e ciência, individualidade e relação.
Um dia, porém, entrou um vírus no site. Nunca se sabe bem como estas coisas acontecem, mas a programação foi perturbada. Os azulejos afectados pelo vírus deixaram de pensar nos outros e centraram-se só em si. Em vez de procurarem formar o cacho mais original, começaram a contestar a relação e até a própria evolução para hexágono. Alguns decidiram manter a forma de círculos, que diziam ser a natural. Enrijaram a sua face externa e isolaram-se, mal tocando nos demais. Outros evoluíram para monótonos quadriculados e outros, ainda, escolheram formas mirabolantes. Com isto, perderam de vista o seu propósito último. Vários ladrilhos passaram até a duvidar da existência do programador, dizendo que ao tocar na margem se desaparecia para sempre.
Naturalmente que esses ladrilhos, recusando a forma de hexágonos, não podiam ser encaixados no mosaico. Por maior boa vontade que houvesse no autor, e por mais belas que fossem as cores e conjuntos, eles não conseguiam ser integrados no grande projecto do site. Assim, o programador foi forçado a criar uma nova página para onde transportava essas peças corrompidas e onde elas vagueavam soltas e sem sentido.
Dado que o vírus fazia perder cada vez mais ladrilhos, o programador decidiu tristemente desistir e começar de novo. Mas depois pensou numa solução mais arrojada: ele iria redimir os azulejos.
Fez então nascer um novo ladrilho, uma peça que surgiu, não como círculo, mas logo na forma definitiva. Era um belo hexágono, branco, imaculado. A surpresa na página foi enorme. Mas aumentou mais quando dele se viu surgir um outro hexágono, muito maior. Era um enorme azulejo que tinha, não uma só cor, mas a fotografia colorida do programador. Deste modo, o próprio autor integrou-se e participou no site.
Esse grande hexágono, a Imagem, tinha a propriedade de transformar logo em hexágonos todos os ladrilhos que nele tocassem, qualquer que fosse a sua forma anterior. E concedia essa mesma capacidade transformadora a todos os que se lhe uniam. Como as suas faces eram grandes, isso permitia que dois ladrilhos lhe tocassem em cada uma. Os primeiros que o fizeram ficaram conhecidos como "os Doze". À sua volta foi-se formando um grande cacho, e a ordem foi sendo restaurada na página.
No entanto, os ladrilhos infectados irritaram-se. Diziam que a Imagem lhes tirava a liberdade e tomava o lugar de programador. Decidiram expulsá-la. Como não lhe podiam tocar, pois seriam transformados à sua imagem, subornaram um dos Doze e, através dele, conseguiram empurrar a Imagem contra a borda da página. Ao tocar lá, ela desapareceu como um ladrilho normal. Os conspiradores rejubilaram. Mas por pouco tempo.
Três dias depois, a Imagem reapareceu, mais bela e brilhante que nunca. Era o primeiro ladrilho que regressava à página inicial. E o seu regresso rompeu a margem. O grande mosaico passou então a ser visível e acessível a todos os ladrilhos que passassem através do regressado. E toda a página viu que o grande desenho em formação no mosaico era a Imagem.
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Sinalizamos aqui as várias intervenções de João César das Neves (JCN). As que reportam a assuntos ou abordagens económicas e às "outras". Nestas outras cai um novo género literário: o conto, o que revela flexibilidade, inteligência e ductibilidade cultural, ainda que discordemos das suas visões da crise da Europa - se reduzidas à ideia da fragmentação da família. Mas a leitura deste interessante conto projecta e recria na sociedade outra dimensão metafórica: não nos reportamos a uma "versão revisionista da catequese"; nem tão pouco à lógica de um discurso evangelizador, na linha da secular tradição do Cristianismo constante dos Evangelhos que foram consubstanciando o Biblo - o livro dos livros - (a Bíblia). Como diria o teólogo da congregação dos jesuítas do ciber-espaço - Volensky Sudjansky - a metáfora está bem driblada mas é pouco eficaz. Rodopia num labirinto hexagonal e perde por falta de duas coisas: falta de função; e falta de verosimilhança. Dá-se o caso, seguindo ainda o logos do supra-citado teólogo, Volensky, de o conto de JCN ser escrito ao mesmo tempo, ou pouco depois do cardeal do Vaticano ter atacado o "consumo excessivo" de informação. Nesse sentido, o timing escolhido pelo autor do conto pode ser entendido, ainda que de forma subtil, como uma forma difusa de dizer que a igreja não está em conflito com a Internet, antes é um membro moderno da Igreja e participa do rizoma que tece a rede das redes, que, por vezes, culmina numa teia. Terá sido este um dos propósitos do conto... Seja como for, quem começa a ler este sui generis conto julga estar diante de um ladrilhador virtual encarregue de reformar a velhinha ARPANET com um toque de hi-tech e de tecnologia de packet-switching inspiradora da arquitectura de comunicações que hoje funcionaliza a Internet. JCN contou um conto, serviu a igreja e colmatou o espaço em aberto; emprestou-lhe ainda um toque de modernidade, concedeu-lhe uma estrutura reticular - através da geometria variável do hexágono e da Ressureição de Jesus Cristo - abandonado por seu Pai - Deus - e, ainda, nos demonstrou por que razão a igreja é a maior ONG do mundo: com um poder de ligação distribuído entre diversos nós - todos com funções na rede, a fim de minimizar os riscos e os cortes de afastamento entre a igreja e a sociedade, a fé e os crentes. Por esse trabalho de arqueologia reticular do novo saber através da técnica do conto pascal, o economista está de parabéns. E a igreja através dele - por ter colmatado essa falha conceptual e epistemológica. Ali podemos ver ainda mais duas coisas: 1) a razão pela qual a internet cresceu continuamente, a um ritmo alucinante; 2) e a facilitação de utilização de novos protocolos de comunicação - de que o conto irrompe agora como paradigma emergente. Isto leva-nos à fixação definitiva de um pressuposto fundamental na história da humanidade: assim como JCN colmatou eficientemente as brechas abertas pelas recentes e imprudentes declarações da igreja acerca dos pecados da internet e dos media em geral, foi Deus - através de Jesus Cristo - quem inspirou Linus Torvalds a desenvolver um sistema operativo baseado no UNIX, depois LINUX, difundido-o gratuitamente na Internet.., um programa de fonte aberta que tornou possível à Rede a sua estrondosa abrangência mundial - a world wide web. Numa palavra, leio o conto e vejo ali não um conto mas o tecido das nossas vidas, o conjunto de nós interligados e concluo pela seguinte fórmula: - Deus = internet (aprenda aqui a fazer um hexágono)
- PS: Publique-se, pois estou certo que haverá lugar na vitrine (que passou a ser um espaço hexagonal de geometria variável), apesar da adesão à rede virtual ser muito superior do que à fé na igreja católica.
- PS1: Esta pequena reflexão é dedicada - além do autor do conto e à igreja católica - ao jesuíta Volensky Sudjansky - que creio também ser economista, muito embora nas horas vagas seja artista de múltiplos ofícios, como Spinoza, excomungado pela igreja por ser filósofo e saber pensar, embora nas horas vagas polisse lentes.
Embora a doutrina se divida - pergunta-se o que faz Jesus com o hexágono(?) na mão?
1) Tenta identificar a centelha de João César das Neves?
2) Escolher qual dos discípulos indica para o trair?
3) Dizer-nos que a metáfora do Keybord oferece mais potencial narrativo do que a geometria do hexágono?
4) E, por fim, encontrar a matrix dos milagres. Nós aguardamos que se cumpra Portugal...
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