O passado e o presente. M. Alegre revisitado...
Rui:
- O passado é o presente do seu tempo e nessa altura era uma realidade como hoje é outra realidade, uma outra realidade que não mete os jovens dentro de barcos, apinhados de outros jovens, com uma espingarda, um bornal e granadas à cintura, para irem matar ou serem mortos para a floresta africana, que nunca tinham visto nem sonhado que existia de tão diferente que era das suas aldeias lá na santa terrinha e o futuro era então ter a sorte de sobreviver e, principalmente, não ficar estropiado, regressar às suas terras, matar as saudades e depois emigrar ou voltar a pegar no cabo da enxada se houvesse um bocadinho de terreno que chegasse para eles ou se a ambição não fosse a suficiente para os fazer arrancar para o desconhecido, desta vez sem a espingarda às costas mas todas as dúvidas deste mundo na cabeça.
- Passava-se isto nos princípios da década de sessenta, hoje passado, então o presente da minha juventude e da juventude do Manuel Alegre. Nessa altura éramos quase todos ingénuos, acreditávamos em tudo o que nos diziam da Pátria, de Deus, da Família e de outras coisas como a do respeito pelos mais velhos e pela autoridade. Não tínhamos como duvidar, faltava-nos a instrução e o esclarecimento político que, de resto, era proibido. Eram tempos de preto e branco, de bons e de maus e ser bom era ser conformado com a sorte que Deus reservou a cada um e conseguir ser feliz sem esperança.
- Manuel Alegre foi um dos poucos jovens de então que teve a coragem de se passar para os maus, muitos anos antes de se vislumbrar a liberdade e os benefícios da vida democrática e os dividendos que os generais políticos poderiam retirar para si. Nessa altura o que eles poderiam esperar era a cadeia e murros no estômago ao pequeno-almoço sempre que o PIDE lhe apetecia como aconteceu com o nosso amigo Saldanha Sanches, pormenores irrelevantes de um passado recente/longínquo que o presente quer devorar.
- Pois bem, eu e muitos outros dos poucos que à data tiveram acesso aos estudos, também estávamos de acordo com aquilo que movia o Manuel Alegre, o que nos faltou foi a coragem para sermos rapazes maus como ele foi, mas hoje, num outro presente, do qual o outro foi passado, que não me falte, já agora, a memória.
- E para que o presente não se misture com o passado, porque à velocidade a que as coisas hoje acontecem o passado deixa de o ser em menos de um fósforo, vamos novamente ao discurso do Manuel Alegre a que me referi e está ainda na origem deste mail, e que é presente.
- Pode parecer um paradoxo mas o que eu apreciava na candidatura do Manuel Alegre é que ela seria uma candidatura perdedora porque não teria o apoio do PS que já tinha, entretanto, declarado o seu apoio a Mário Soares, e seria interessante verificar até que ponto os cidadãos deste país seriam capazes de se desvincular dos comandos partidários que regem as decisões políticas e seguirem um candidato poeta cuja mensagem nos acordasse deste torpor calculista em que só o poder interessa e os cifrões fazem a diferença.
- Toda a primeira parte do discurso apontava nesse sentido, as palavras eram vigorosas e certeiras e depois… foi como tu dizes, a capitulação, a rendição aos interesses. O poeta não sobreviveu à vitória da revolução, tinha morrido com ela, agora já só faz versos, porque a verdadeira poesia está dentro de nós, é um estado de espírito, um desapego, um grito, um ir em frente sem cuidar das consequências porque, acima de tudo, o importante é seguir os impulsos nobres que nos vão cá dentro, como ele fez na sua juventude seguindo o futuro incerto da clandestinidade.
- Não conheço a obra poética do Manuel Alegre como também não conheço muitas outras coisas que devia conhecer mas lembro-me das letras das canções revolucionárias da minha juventude e algumas eram dele e eram lindas.
- O poeta está morto, no seu lugar ficou apenas um político, mais um…é a vida como diria o seu camarada António Guterres.
Meu Querido Tio,
Desta vez é que tu fizeste verdadeira poesia a falar assim do Alegre e desse tempo em que, como dizes (e bem) só se falava da guerra, da utopia e da ingenuidade que a alimentava, do analfabetismo funcional, da pobreza franciscana que toldava as populações que nem sequer tinham acesso aos estudos e em que a crítica era uma heresia, ter coragem era crime e Alegre, de certo modo porque era destemido e tinha o que vocês não tinham, representava um ícone da liberdade e da coragem pessoal e política. É certo que também citas Saldanha Sanches - que é de longe intelectualmente superior a Alegre, mas esse hoje ainda continua a ser corajoso e independente.
Dou-te só dois exemplos do Saldanha Sanches para não ser fastidioso a um Domingo: ao criticar Barroso como o fez, dizendo que se tratava de um maoista oportunista e que depois virou o leme, o que prova que as pessoas servem-se da ideologia para executar projectos, ter projecção pública e política etc, etc, e, em 2º lugar, a forma com inteligente, estruturada e corajosa como Saldanha Sanches tem criticado publicamente a pequena e alta corrupção que graça no meio das autarquias, do futebol e da construção civil com muitos dos "autarcas modelos" - hoje de "tanga" - (para utilizar uma expressão de Barroso), que hoje também apostaram no paraquedismo político, a ganhar comissões e a sacar alguns proventos que depois remetem para contas of-shore na Madeira, nas Caimão e no raio que os parta ou na terra dos relógios e dos chocolates, enquanto que o povo continua a acreditar - estupidamente - nas suas façanhas de político. No fundo, o Saldanha Sanches "tem tomates" e diz hoje aquilo que sempre disse de alguns caciques locais que deitam fumo pela boca e pelos ouvidos e qualquer dia implodem como se faz com aqueles edifícios em fim de carreira que se descobriu serem já um dano para a natureza.
Refiromo-me ao facto desse grande fiscalista dizer de certos autarcas à portuguesa que copiam muito do que se passa no Brasil ao nível dos governos locais: "Eu roubo mas faço"..
Mas o ponto, e bem, é que voltas à utopia, à canção e às flores de Abril que fizeram muito a tua geração política que hoje guardam a nostálgia do Alegre. É pena que Alegre já não se lembre dessas coisas que fizeram dele o ícone que em tempos foi e, hoje, no presente te obrigaram a ti a falar em Alegre na forma pretérita. De facto, ainda pensei que em matéria de letras e de músicas pró-revoluçãao - dado que embalaste nesse caldo romântico-revolucionário - te fosses também referir ao Armando Correia d' Oliveira, ao Zeca Afonso, Fernando Tordo, à Natália Correia, o Ary dos Santos, os irmãos Janita do Alentejo que hoje passam boa parte do tempo em Cuba (nessa grande "democracia" ditaturial castriana, onde ainda se mata por delito de opinião) e de mais uns quantos nomes e figurões que agora me escapam, mas são, evidentemente, de esquerda. Mas não!!! foste escolher logo o Alegre que é um triste, nem de propósito, pois se o Alegre lê o que tu escreves hoje sobre ele - ele não deixa de existir só para a política nem para a poesia, julgo que ele deixa também de existir para a vida porque lhe daria um enfarte. De facto, Alegre colocou-se no papel do paraquedista que só em pleno vôo se lembra de não ter levado o páraquedas para o salto...
Por isso te digo, que Deus o ajude e lhe dê uma vida longa, porque apesar de tudo e das piroetas que ele fez, o Alegre é aquele homem que enche o peito, depois expira, olha para trás e vai-se embora com a palavra "desistência" cravada na nuca... Ora isto de romântico e de revolucionário não tem nada, de conservador tem tudo! Afinal, em que ficamos??? Será que Alegre era um tertium genius - mitigando o papel do revolucionário-conservador?!
Olha o nosso ilustre historiador, José António Saraiva - que ainda comunica melhor que o Marcelo e consegue inventar um pouco mais do que ele - e inclui-se sempre dentro da história que ele conta - um dia também afirmou em pleno directo - num programa do Júlio Isidro - que o "botas" - perdão o D. António de Oliveira de Santa Comba-Dão (que pomada...) era um "democrata". Nesse dia dei uma queda e parti uma unha do pé que ainda hoje não me cresce... Não sei bem porquê.
Mas a minha maior alegria foi ter descoberto ontem, que o nosso amigo Dr. Jorge M0niz Barreto Zambujo aprecia muito os teus comentários aqui no nosso blogue, e que ele próprio tem um sobrinho com quem mantém um tipo de relação memorialista como este que aqui nós cultivamos. Mas já sem o Alegre, é claro. Qualquer dia ele próprio irá fazer um blog e expor por lá imensas histórias... Aguardamos expectantes.
Até porque hoje nós já podemos falar de mais coisas que não sejam apenas Fátima, Futebol e Fado... Olha, podemos dizer ao País, por exemplo, que ontem a Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, Teresa Zambujo, inaugurou um Porto de Recreio que é verdadeiramente uma pérola do Atlântico em Oeiras e que irá servir, certamente, os interesses desportivos e as alegrias de muita gente no concelho e até do País e do estrangeiro.
De facto, a vida entre o passado e o presente é estranha. Muito estranha... E quanto ao futuro é melhor nem pensar... Pois como diria um circunstante de ontem - em plena inauguração - não nos devemos aventurar pela Marina dentro sem olhar bem para os céus, é que de lá por vezes chovem pedras, ou melhor granizo em formato de presuntos de Chaves que mais parecem paraquedistas. Referiram que era Isaltino Morais na sua nova aventura no espaço - só para testar a abertura do pára-quedas.
Posteriormente, referiram que o mesmo "OPNI" (Objecto Político Não Identificado, tal como o grande Jacques Delores chamava à Europa na década de 90) caíu sobre o casco de dois iates da patrulha da Marinha costeira deixando-os completamente danificados com o impacto. É caso para dizer que nem a inauguração estava consumada e já havia estragos nas infra-estruturas - que o próprio tentou remediar oferecendo camisolas côr de lagarto às pessoas que as rejeitavam e isqueiros a não fumadores...
Mas voltaremos a este assunto oportunamente.
Um bom domingo e um belo ténis..
Abraço do teu sobrinho que te agradece essas memórias
Rui Paula de Matos
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